Ilustração de ANDRÉ LETRIA
O meu nome é Ginez de Passamonte e nasci em Aragão num lugar desconhecido
não muito afastado de Calatayud. A lembrança mais antiga que guardo é de meu
pai, com um avental de couro, malhando a incandescência do ferro na oficina que
havia na loja da nossa casa. Agora que estou velho e sigo a custo o curso
destes primeiros anos do século, o décimo sétimo da era de Nosso Senhor, acordo
muitas vezes durante a noite com os olhos cheios dessa imagem ao mesmo tempo
querida e, pela distância, assustadora. Meu pai que me educou no respeito e
temor de Deus, minha mãe em cujo seio desfolhei o livro iniciático da vida, estão
para sempre guardados no meu coração. Fui amado em criança, cresci saudável, estudei humanidades,
tomei ordens religiosas que com peso rompi, estive na batalha de
Lepanto tendo ficado cativo dos turcos como remador de galés.
É mister dizer ao leitor que sempre fui seguidor da verdade, vendo o
embuste e os processos ardilosos como
chagas maiores da alma e da perfeição humana.
É mister esclarecer, indo direito à razão deste humilde escrito, nunca
ter andado de grilhões e algemas pelos caminhos da Mancha, sob o jugo da
justiça de D. Filipe II, rei de Espanha e de Portugal, consorte de Inglaterra, herdeiro de Carlos V,
o poderoso imperador do Sacro Império Romano Germânico e rei de todas as
Espanhas, senhor, o filho, de domínios onde o sol jamais se punha, desde a
americana Filipeia às asiáticas Filipinas onde Magalhães pereceu. Nunca cometi
crime contra Deus ou os homens, nunca fui perseguido pela Santa Irmandade ou
pela justiça real. A notícia de crimes que não pratiquei e a humilhante prisão que
me atribuem foram inventadas pelo cronista arábico Cid Hamete Benengeli e logo propagadas
por um preclaro autor de contos, rimances e entremezes, meu companheiro de
armas e tão sofredor de cativeiros como eu fui. Já lhes perdoei esses tortos e
agravos, Deus Nosso Senhor lhes perdoe também se tal estiver compreendido nos seus
insondáveis desígnios.
Saiba-se, portanto, que não fui roubador de asnos nem de alforges, não
apontei escopeta ou arma branca aos meirinhos do rei, tampouco alguma vez me
dei ares de cigano ou me chamei Ginezilho de Parapilha como vejo escrito nesse
grosso volume de tamanha fortuna literária. Ao tempo em que me davam como fugido
à justiça real, acolhia-me eu diariamente a Nossa Senhora do Pilar, em
Saragoça, buscando remédio para as minha dores em companhia de um irmão da
Confraria do Rosário a quem muito me afeiçoei.
E que dores! Quixote e enamorado também eu fui, amador de uma donzela
que só desesperança me deu. A verdade faltante nessa fábula da serra Morena,
escrita pelo plumitivo de Alcalá de Henares, é ter eu sofrido, não nas suas
brenhas, como Cardénio, mas no imo da alma, a coita de uma paixão sem retorno
que ainda não se apartou de mim. Amei essa Doroteia que de mim nunca fala e só
de Fernando se queixa, o sedutor que a abandonou. As mulheres, especialmente quando belas, são
alvos expostos e sempre tangíveis de homens inescrupulosos. Acreditei no amor e
idealizei as suas excelências, perdi Doroteia como Cardénio perdeu Lucinda,
porque na consumação dos afectos há cálculos e congeminações que não entram nos
corações dos puros. O que não posso perdoar é que os contadores de histórias se
esqueçam de as contar no seu natural e inventem e envileçam os factos por
adorno estéril ou simples má fé.
O Quixote da lança frouxa e do elmo de barbeiro poderá ter sido muito
verdadeiro no seu amor por Dulcineia, não o nego. Mas não fez mais que
reproduzir um código, tomar para si um modelo de amar prescrito, ao longo de
séculos, em centenas de livros. Eu segui o modelo do meu coração, o único
válido e autêntico, aquele que levou Ulisses pelo mar, de Tróia a Ítaca,
fugindo das Sereias e de Circe, navegando entre Cila e Caríbdis para se juntar
a Penélope do laborioso manto.
Tudo espero contar na minha autobiografia, aquela de que se fala, em
tom jocoso, no cartapácio citado. Se é ou não ao jeito da de Lazarilho de
Tormes, os leitores, se os houver, a seu tempo o dirão. Nela tratarei de repor
a verdade, o espírito dos factos. Que não me falte o ânimo para a poder
concluir, sem embargo de, à fé de quem sou, aqui declarar as ganas que às
vezes sinto de dela desistir e pegar nesta história do Quixote para lhe dar o
andamento e a continuação merecidos.
Chamar-lhe-ão história apócrifa, eu sei, como é de bom tom e usança
entre gente que se julga detentora da
ciência universal das coisas, mas isso, bem visto e pensado, é o que menos me
importa.
2 comentários:
Fonte desta ficção, veja-se o seguinte artigo do Centro Virtual Cervantes:
http://cvc.cervantes.es/literatura/quijote_antologia/riquer.htm
Bem pensado e melhor passado a escrita. Só me ocorre agora o que faria aquele famoso revisor, que não se limitava à ortografia...
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