REMBRANDT, 1642, óleo sobre tela, Rijksmuseum, Amsterdão
Uma ideia
aplicável à leitura de um livro é a de ser uma espécie de “work in progress”, não
só naqueles momentos em que o leitor se mete pela primeira vez na floresta do
texto, ganhando capítulo a capítulo o conhecimento da obra, como ao longo da
vida, sempre que a ela volta e com novos olhos a lê e compreende.
Estou a ler A Ronda da Noite, de Agustina
Bessa-Luís.[1] Ainda
não passei de metade do livro, logo, tudo o que possa dizer será sempre
inacabado e provisório, fruto de uma leitura em curso. Um aspecto, porém, desde
já arrisco, seguro de não cair em grande engano: sendo esta narrativa um
diálogo entre dois textos – o pictórico de Rembrandt e o literário de Agustina –,
aplica-se a um e outro a mesma metodologia de abordagem e interpretação.
Ninguém “lê”
a obra de Rembrandt partindo da esquerda para a direita, começando naquele
militar que levanta a grossa lâmina da sua arma até ao tambor mutilado[2]
do extremo oposto. O facto é que o “leitor”
da narrativa de Rembrandt começará provavelmente por se deter nas duas figuras
centrais – o “nocturno” capitão Banning Cocq e o luminoso tenente Willem van
Ruytenburch; reparará de seguida na figura da menina (Saskia?), igualmente
luminosa, atravessando o espaço da tela; andará depois – e desculpem-me se
estou a simplificar ou esquematizar as coisas –, pelos militares e demais
figuras do cortejo, voltará a Saskia, ao capitão e ao seu tenente,
interrogar-se-á sobre o destroço do pobre tambor, tentará uma leitura de
conjunto na procura dos elos da
narrativa.
No romance de
Agustina não nos é dado procedimento diferente. A história de Maria Rosa e de
Martinho (a saga dos Labasco?) não é servida de trás para a frente, da
esquerda para a direita ou segundo outro critério de ordenação susceptível de
tranquilizar o leitor, dizendo-lhe: “Segue-me e compreenderás”. É o leitor que
terá de fazer o seu próprio caminho, compreendendo o que se diz, o que se não
diz e o que apenas se sugere. (Vejo haver muitos “ques” na última frase,
desculpe-se-me o desaforo estilístico pois Agustina também os usa sem
parcimónia em certo passos da sua escrita).
Trata-se
então de o leitor fazer o seu próprio caminho. O caminho faz-se caminhando –
frase talvez de Pessoa, de António Machado, ou de alguém por eles. Não interessa.
Ler e ler bem é um caminho, neste caso o único, para interpretar. De outra
forma, arriscamo-nos, como na história desta obra monumental de Rembrandt, a chamar
“ronda da noite” a um “cortejo diurno” cheio de luz e cor.[3]
[1] Leitura
para a Comunidade de Leitores da Biblioteca Municipal de Cascais, Casa da Horta
da Quinta de Santa Clara, dia 21 de Novembro, às 18h.30m.
[2] Obrou-se
esta mutilação, como nos informa a própria Agustina, porque a tela, de grandes
dimensões, não cabia na parede da Câmara de Amsterdão onde a queriam expor.
[3] No
século XIX, a tela recebeu o nome de “A Ronda da Noite” por uma equívoca
interpretação, dado encontrar-se obscurecida pela oxidação do verniz e pela
sujidade.
2 comentários:
Amsterdam, 1999, se a memória não me falha, Rijksmuseum: só quero ver a Ronda da Noite, a pressa não permite muito mais, pelo caminho fico presa à noiva judia, mas é o outro que quero, aquela Ronda que me fascinou desde a o primeiro olhar (outra vez a adolescência?). Ei-lo em todo o seu esplendor, dá vontade de entrar. Momentos só igualáveis à visita toledana ao Conde de Orgaz ou às Meninas do Velasquez no Prado, ou à Primavera do Boticelli... Até parecem clichés, mas depois, ainda que à distância regulamentar, não sabemos o que fazer, ali especados: olhar não chega, falar, de quê? interpretar é para depois... será que, aqueles quadros, de alguma forma os trouxe comigo, os transporto também? Vou estar muito interessada nessa obra da grande Agustina. Infelizmente, mas por bons motivos, não estou por cá no dia 21. Mas fico a pensar, o que é muito bom: obrigada, Manuel.
"Ele [Rembrandt] acaba a 'Ronda da Noite' quando Saskia [primeira esposa de Rembrandt] morre. Não será a alma de Saskia que se converte num duende para romper caminho pelo meio da companhia do capitão?"
(Cap. IV)
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