10 março 2012

Porque há mais mundos (triviais) para além dos livros, trago-vos este bocadinho de prosa.

“HÁ MAR E MAR...


... Há ir e voltar”: velho ditado inscrito, a branco já muito delido, na velha bóia de cortiça do I.S.N., forrada a tela debruada, a que muitas repinturas de vermelho dão uma patine de cuidado marinheiro. Completa a imagem uma corda branca, presa a espaços regulares, que circunda a bóia pelo seu perímetro exterior. Está toda empertigada, numa peanha, com outros acessórios de salvamento, um cartaz explicativo da forma de socorrer um náufrago, desenhos que põem a boca e o corpo do socorrista ao serviço do outro corpo, o que precisa urgentemente de salvação: tudo isso forma um conjunto, há um perímetro protegido, também por cordas. Ninguém se atreve a violar aquele espaço, só ele livre, precária clareira em toda a extensão da areia, pelo meio do dia, com o sol a pique, a morder os ombros, as ancas, os tornozelos.
Vem o pôr-do-sol e a noite, a praia esvazia-se, mas a bóia continua sempre ali, vigilante, avisando os incautos: cuidado com o mar, ele é traiçoeiro, tem duas palavras diferentes, tudo parece fácil para ir, e tudo se pode complicar na volta.
É quando julgo ter assumido enfim que tudo é, em última instância, espantosamente irrelevante, que esta imagem, resgatada da infância, este aviso, repetido aos meus ouvidos até à exaustão, me chega de novo, por outras vias e inesperadas origens. Apercebo-me da múltipla trivialidade, rugosidade incómoda que alimenta o quotidiano, como recurso inesgotável de comunicação.
Compreendo também que todo o trivial se resolve numa certa forma de traição: nada é apenas o que pode parecer, o mar calmo, o sol de Março, o entendimento entre nós.
“Há mar e mar...” muitas vezes, avançamos numa relação como um nadador inseguro que se aventura no mar sem avaliar bem a distância que terá de percorrer para voltar à praia.
Acontecem sempre muitas coisas, cujo valor depois se relativiza ou a que ficamos presos pela memória, como farrapos precariamente presos a arbustos espinhosos que o vendaval arrasta pela paisagem desolada.
Náufragos da afectividade, num mar de ambiguidades e mal entendidos, quando nos julgamos a salvo, resgatados pela consciência da omnipresente irrelevância, percebemos enfim que voltámos, sim, mas não à mesma praia.

4 comentários:

Manuel Nunes disse...

Belo texto, nada trivial, com um final poderoso. Embora eu, talvez por ser um mau nadador, volte sempre à mesma praia.

Joca disse...

Inspiradamente, O'Neill lá sabia que, para além de uma frase publicitária, há muitos mares, mas mais importante é salvar o náufrago.
Quem nunca naufragou no mar da afectividade?

Custódia C. disse...

As caminhadas à beira mar, estão a tornar-se grande fonte de inspiração!

Maria Amélia disse...

Pois sim: se os passeios à beira mar e outros, congéneres, nos ajudassem a resolver problemas, é que era bom!
Mas deixem lá! Obrigada por manterem o blog a blogar!