12 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (3)

Há uns anos, após a leitura de um livro de contos de um amigo (edição da Chiado ou outra qualquer editora do género), exprimi a opinião de que a prosa era boa mas não estava posta em estilo actual, fazendo lembrar os textos de Camilo ou Júlio Dinis. Respondeu-me que sim, podia ser verdade, mas o que queria eu que ele fizesse se havia sido com Camilo e outros do seu século que aprendera?

Milan Kundera tem um conjunto de ensaios (“Consciência da continuidade”, desse livrinho aí na imagem) em que é tratado o assunto do inactual em arte. Imaginemos, diz o escritor, que era possível um virtuoso dos nossos dias compor uma sonata tão perfeita como uma qualquer de Beethoven, de tal forma que melómanos apurados, ao ouvi-la, arriscariam tratar-se de obra do grande compositor alemão. Ao saberem, porém, que não era, que fora um extraordinário virtuoso contemporâneo a criá-la, não deixariam de rir pela inactualidade do trabalho, reconhecendo-o não como obra de valor original, mas como um simples pastiche.

Isto diz respeito também à poesia. Tenho falado com leitores que não gostam da poesia moderna (alguns até não gostam de nenhuma poesia) e sentem que os versos rimados de Augusto Gil ou João de Deus, quando não os de Guerra Junqueiro, é que lhes enchem a alma.

Não está em causa a poesia dos clássicos, isto é, daqueles poetas que  por valor lograram romper o esquecimento que o tempo sempre tece. Eles serão sempre os maiores! Ocorrem-me os nomes de Camões, Sá de Miranda, Bocage, Quental…  Poetas com quem a poesia contemporânea dialoga com plena consciência do fenómeno da continuidade em arte. É o caso deste poema (“Minha senhora de mim”) de Maria Teresa Horta. Ecoa nele um conhecido verso de Sá de Miranda e aqui fica, também, em memória da autora:

Comigo me desavim / minha senhora / de mim // sem ser dor ou ser cansaço / nem o corpo que disfarço // Comigo me desavim / minha senhora / de mim // nunca dizendo comigo / o amigo nos meus braços // Comigo me desavim / minha senhora / de mim // recusando o que é desfeito / no interior do meu peito.

1 comentário:

Custódia C. disse...

Alguém me disse um dia que a poesia não era para todos. E eu pensei que cada um, a qualquer momento, pode encontrar a sua...