12 dezembro 2011

Respondendo a um auto desafio, com a condescendência do autor e esperando mais episódios, aqui vai uma continuação:

O CONTO DE NATAL CONTINUA


Enquanto atravessava a Rua do Ouro, por entre a azáfama de mais um Natal, recordava, sim, esse episódio já longínquo, as dúvidas que ainda o assaltaram, antes que acabasse a magia do período anual da solidariedade que também a ele envolvia.
Passadas quase duas décadas, muitas coisas tinham acontecido, mas não conseguia deixar de evocar algumas impressões que o tinham marcado naquela altura, nem ele sabia exactamente porquê e lhe surgiam agora, como um eco intemporal.
Bem, diga-se em abono da verdade que, passadas as primeiras sensações, depois de sair, um tanto atordoado, da zona do hospital, onde se tinha dirigido para dar sangue, fazendo o que considerava a boa acção de uma vida, caiu em si, e reflectiu mais maduramente sobre a situação em presença.
Desde logo, apercebeu-se que as dúvidas quanto ao seu estado efectivo de saúde talvez não fossem de desprezar, pois apesar de ser novo e se sentir no auge do vigor físico, os riscos que tinha corrido de contrair H.I.V. ou outra doença sexulamente transmissível, eram reais, e conforme as horas daquele mesmo dia se passavam, entre as deslocações na cidade e os deveres programados, a dúvida insidiosa crescia no seu subconsciente, e um pensamento insistente tomava forma: e se...? Sim, havia uma voz contraditória que se sobrepunha à estouvadice instalada, ao resultado prático de uma filosofia de vida que tinha como móbeis principais os desejos, a vontade, os gostos, os interesses exclusivamente pessoais, num registo de egocentrismo carinhosamente cultivado, dir-se-ia até, cultivado com requintes, em rotinas inalteráveis que dificilmente se compaginavam com as de outras pessoas. Acontecia sobretudo que, mau grado, estas dúvidas começavam a minar aquela barreira de segurança e certezas que tão cuidadosamente tinha construído para si mesmo.
Recordava o quanto tinha ficado contrariado por se sentir como que excluído da participação solidária do espírito natalício, para logo a seguir voltar à preocupação exclusiva consigo mesmo.
Enquanto descia as escadas da estação do Metro e, como um autómato, passava as barreiras para as plataformas, reflectia sobre o pouco que, na realidade, tinha mudado na sua vida.
Havia, no entanto, mais qualquer coisa, sim, havia uma consciência diferente de si mesmo, uma capacidade de auto-distanciamento que a idade proporciona (nem tudo se perde). Até parecia que o Natal era uma época propícia a descobertas inéditas. Foi então que o zunir do rodado ritmado, acelera-desacelera do comboio lhe trouxe uma pergunta insistente: que sentido, que sentido, que sentido? Ao mesmo tempo pensava, que tolice, isto não são os sinos do Ano Novo!
Relanceando o olhar pela carruagem, apercebeu-se da indiferença mole que rastejava pelas superfícies encardidas e se colava à roupa, às malas e mochilas, à pele dos passageiros e apeteceu-lhe gritar, na certeza de que ninguém o ouviria: a minha vida é de uma monotonia atroz!
A seu tempo, tinha deliberadamente trocado compromissos pessoais, afectivos, quiçá familiares, pela liberdade concreta de uma vida de quase isolamento. Perguntava-se agora que liberdade era essa, cujo preço eram horas a mais a sós consigo e com o seu vazio interior. Alguma coisa de essencial lhe tinha escapado, nas escolhas que julgara fazer; o que tinha, apenas o devolvia sempre a si mesmo, numa espiral depressiva, e isso era mais doloroso de admitir que aquela incapacidade de dar sangue de há duas décadas atrás.

3 comentários:

Manuel Nunes disse...

Nunca é tarde para repensar a vida. 20 anos depois, é obra! Demonstra, ao menos, que esta personagem tem memória - algo que se vai perdendo nos tempos que correm.
Achei interessante que as reflexões sobre a vida lhe viessem na estação do metro, em plena "azáfama" do Natal, e não na solidão do seu quarto, na igreja ou à mesa do café. Isso demonstra que o homem tem uma cicatriz natalícia. Mas quem é que não tem?

Anónimo disse...

Gostei.
A liberdade é sempre uma faca de dois gumes, é sempre uma escolha dificil.
Maria Elvira (BIA)

Custódia C. disse...

Eu gostei do detalhe interactivo que levou o "...zunir do rodado ritmado ..." a cruzar-se com o som cadenciado dos "... sinos de ano novo..."