Aqui vai um conto de Natal deste escriba, escrito em 2006 e agora revisto e corrigido (se é que tem correcção possível!) para publicação neste exigente blogue:
UM CONTO DE NATAL
Assediava-o um inusitado desejo de praticar o bem, de amar o próximo como a si mesmo, de se abrir a rasgos de generosidade em relação a indigentes e outros desprotegidos da sorte. Quem o conhecia – amador da sua pessoa acima de todas as coisas – só podia atribuir tal modificação ao espírito do Natal, ao ambiente da quadra festiva que se vivia. Os ornamentos das ruas, os apelos à paz e ao amor feitos em baladas cheias de emoção que a rádio e as instalações sonoras das superfícies comerciais com tanta insistência difundiam, contribuíam para reforçar os laços de solidariedade entre os homens, para fazer despertar os tesouros da fraternidade, e enchiam-lhe o coração de bons sentimentos e benévolas disposições. Depois de todo um ano em que atraiçoou amizades, atropelou direitos, mentiu e guerreou, era extraordinário sentir o maravilhoso estado de alma que nele se manifestava!
Naquele Natal, a maior das boas acções que tinha projectado praticar era a de fazer uma dádiva de sangue. Havia tantos acidentes na estrada, tantas pessoas internadas dependentes de transfusões e, por outro lado, como os serviços de saúde não cessavam de informar, tanta falta de sangue de todos os tipos, que estava firmemente disposto a tornar-se um dador benévolo.
Foi assim que numa manhã da semana que antecedia o Natal, transbordando de amor pelo próximo, rumou ao serviço de recolha de sangue do hospital da sua área. Tirou a senha, esperou pelo atendimento, e não demorou muito a sentar-se diante de uma jovem médica, bonita e inquiridora.
- Idade?
- 29 anos.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Sofre de alguma doença crónica?
- Não.
- Alguma vez teve relações sexuais com homens?
Aturdiu-se com esta pergunta.
- Sim ou não? – insistiu ela.
- Não!
- Alguma vez utilizou drogas por via endovenosa?
- Não!
- Quantos parceiros sexuais teve nos últimos seis meses?
Aqui hesitou na resposta. Não se importava nada de declinar o número de mulheres com quem praticara sexo nos últimos tempos. Afinal até era daqueles que tomavam nota na agenda de cada vez que uma nova experiência lhe acontecia. Não fazia segredo das suas conquistas e tinha sempre aberta, para quem quisesse ver, a sala dos troféus. Mas incomodava-o que a questão lhe fosse colocada de forma tão neutra e profissional por uma jovem médica de rosto atraente e, sobretudo, que ela não tivesse juntado ao radical da palavra “parceiros” o morfema de género feminino “a” adequado à sua condição de heterossexual. Mas lá respondeu, enfatizando a palavra “parceiras”. A médica então perguntou:
- Usou sempre preservativo?
Meteu a mão na consciência, até estava com vergonha de responder, mas logo se abriu perante a insistência dela. E foi aí que as coisas começaram a complicar-se. Tinha tido não uma, mas várias relações de risco, o que não quadrava com os padrões comportamentais definidos para a aceitação de sangue dos dadores. Ainda por cima fizera uma tatuagem nas costas, adorno corporal que pareceu não agradar à médica.
- Bem, para já não podemos aceitar o seu sangue. Vamos ter de fazer análises e o senhor terá de aguardar pelos resultados.
Esmagado pela rejeição, tartamudeou umas palavras de súplica: que não havia nada de mal com o seu sangue, que era um homem saudável, que aceitassem a dádiva e logo fariam as competentes análises, veriam como era sangue de primeira qualidade, sem nenhum problema.
- E pensa o senhor que o hospital pode dar-se ao luxo de gastar bolsas de recolha e demais consumíveis com sangue que poderá não estar em condições? Até parece que não conhece o rigor das restrições orçamentais! – Isto disse a médica enquanto aprontava uma seringa para realizar uma colheita de análise.
Saiu cabisbaixo, infeliz. Ainda passou pela salinha anexa para comer umas bolachas e beber um cálice de vinho do Porto. Estava mesmo a precisar.
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma plena na onda de fraternidade da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver o espírito do Natal!
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma plena na onda de fraternidade da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver o espírito do Natal!
No caminho para casa ia meditando, pesaroso, na melhor forma de ultrapassar aquele revés. Distribuir comida aos sem-abrigo do bairro? Dar esmola para as obras de caridade da igreja? Comprar uma caixa de postais de boas-festas da Unicef? Alguma solução teria de encontrar para concretizar os seus desejos de amor pelo próximo, e não poderia passar daqueles poucos dias que ainda faltavam para a festa do nascimento do Menino Jesus. É que depois já seria tarde: a seguir ao Natal, voltaria certamente a estar muito preocupado consigo e com os seus projectos pessoais.
5 comentários:
Os espíritos de Natal apareceram em sonhos e o homem ficou intranquilo. Tinha de apagar as culpas do passado e do presente...se calhar voltou ao mesmo na festa de Ano Novo :)
Ass.: Dickensiana
Pois ... as consciências gostam de sair à rua no Natal.
Muito actual a tua prosa, Manel
Ora bem: isto merece uma continuação, eventualmente epílogo! Posso fazer uma tentativa, autor-mor?
Como não recebi resposta do autor, não me atrevo... Está certo, não é verdade?
Atreva-se, Cara Colega, mas não se aceitam fantasmas! Olhe, inspire-se no belo quadro do Piero di Cosimo.E haja depois quem continue: até dia 30 poderão sair muitas histórias (estórias, diz a Colega noutro passo).
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