14 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 2 )

Foi só ao fim de um certo tempo, o suficiente para que Ebenezer Scrooge sentisse aumentar de forma incontrolável a dor de barriga e se visse na situação humilhante de lhe escorrer pelas pernas uma massa grossa entre o líquido e o pastoso constituída por aquilo que muito bem se imagina, que a assustadora aparição resolveu falar.
– Desgraçado onzeneiro que nunca entrarás na barca santa do auto de Gil Vicente! Fica a saber, infeliz, que não tenho nada a ver com o fantasma do teu sócio - boa encomenda era ele! -, nem com os três espíritos grotescos que te visitaram. Não pertenço a esse mundo de vãs assombrações, mas sim ao dos que sofreram a perfídia, o crime, o roubo dos bens terrenos e do aconchego familiar. A minha mágoa, que uma triste vingança não logrou remediar, arrasta-me pelo mundo como um morto-vivo. Não te acenarei com natais de farta-brutos nem com a felicidade terrena, que não existe, não te procurarei emendar, pois já não tens emenda, quero apenas que saibas algumas coisas e que as possas transmitir a quem estiver a tempo de ainda se servir delas.
O prestamista, apavorado, sondou a porta da sala avaliando as possibilidades de se escapar, mas num momento, tão minúsculo como a cabeça dum alfinete, viu a sua vida toda desde pequenino, e isso fê-lo deter-se. Dir-se-ia que um olho mágico lhe nascera na cara ou que lhe era dado contemplar o aleph de Borges, embora não tivesse consciência de nada disso, coisas que estavam para além do seu tempo e da sua compreensão. Molhado e sujo como um rato de esgoto, mastigava a saliva amarga e tremia do corpo e da alma, mais assustado que Jonas dentro da barriga da baleia ou que Daniel na cova dos leões.
Sim, via a jovem Belle, a quem se ligara por um compromisso antigo, e que o deixara no caminho da vida abandonando o “sonho inútil” de seguir com ele. Certo, ela teria as suas razões, mas faltara-lhe força para se impor e contribuir para a sua transformação como homem. Lentamente, à medida que via mais episódios da sua vida, o temor regredia e uma relativa tranquilidade começava a instalar-se na sua pessoa. A influência deste quarto espírito levava Ebenezer Scrooge a ver os factos do seu passado de maneira diferente, a tomar como certo que nenhum homem vale por si só, sendo fruto das suas tendências e das tendências de todos os que o rodeiam. Porque falhara a sua relação com Belle? Vivia agora uma vida tranquila e sem história, ainda que com uma filhinha querida, na companhia do marido, rindo-se das suas singularidades de prestamista velho e avarento. E atreveu-se a questionar a assombração.
– Sabes, espírito? Desde que me apareceste já passei de um estado de completo terror à compreensão de algumas coisas importantes. Quem és tu, afinal?
O espírito pareceu tornar-se maior como uma sombra que cresce da própria sombra até encher por completo todo o espaço em que se concentra. Mas já não era assustador. E disse:
– Sou o único espírito verdadeiro a que o teu criador se referiu no conto que escreveu. Sou o espírito do pai de Hamlet, o espectro do castelo de Elsenor.

2 comentários:

Maria Amélia disse...

Ora aí está um final desconcertante, à boa maneira!
Pergunta, que pode não ter cabimento, já agora: tendo em conta que a figura do espectro de Hamlet poderá estar subjacente à composição formal dos espíritos ou fantasmas de Dickens (e provavelmente de milhentos outros), que mensagem ou papel poderá ter nesta história, atendendo ao seu carácter original--o espírito da vingança?
Aguarde-se...?

Joca disse...

Eu espero que não termine aqui, no Reino da Dinamarca. Nalet e Hamtal, não dão com nada. Espero mais episódios :)