Acabámos, alguns com certo alívio, a nossa «viagem» literária mensal em torno da tempestade interior que fustiga o protagonista do romance homónimo de Ferreira de Castro, o pequeno burguês Albano, homem de extracção rural que faz o percurso penoso e tão habitual, da província para Lisboa, à procura de uma vida melhor, onde serve como marçano nos seus verdes anos, sofrendo humilhações e duros esforços físicos (veja-se a descrição destes anos de aprendizagem nas Marés de Alves Redol).
Desta vida de subalternidade, Albano emerge, graças a estudos nocturnos, a um lugar melhor como empregado bancário,subindo a chefe da sucursal(?). Mas nunca se conseguirá reconciliar com a imagem que de si tem.
Após a morte da primeira esposa, toma uma nova mulher, com um passado, que não o ama e que também ele não conseguirá amar. Dois seres perdidos nas suas contradições, num engano mútuo, que redunda em desavença, procurando um lugar ao sol, social e emocional: ela procura uma solução para o empobrecimento não compatível com uma anterior posição social; ele desejando e desposando uma mulher mais sofisticada, espécie de troféu, símbolo da desejada ascensão social e possível compensação para as suas penas antigas, emulação para a sua imagem e vaidade.
Mas face a uma possível traição, que se revelará no seu abandono efectivo pela mulher, a história gravita em torno do seu desespero, do seu orgulho ferido, da vergonha social e medo do ridículo e da humilhação pública: «Agora, os outros rir-se-iam ainda mais. Ela não só o atraiçoara, mas também lhe fugira, demonstrando que não tinha (...) absolutamente nenhuma consideração por ele. Era o pior que se podia fazer a um homem! Quando ela o enganava às ocultas, com medo que ele soubesse, ainda havia nisso algum respeito... Mas assim, fugir...Iam rir-se à farta!»
A questão é como «lavar a sua honra», castigar a «aleivosa» e o que fazer , a seguir, consigo. Centrado em si, o personagem esquece que pratica o mesmo tipo de comportamento egoísta com outras mulheres (Genoveva) para fins «higiénicos». E apesar do reparo de seu amigo, Adriano, «Elas, às vezes também têm as suas razões (...). Tudo isto está mal feito: o que fizeram os homens e até o que a natureza fez. era preciso fazer tudo de novo...», a sua preocupação rodará sempre em torno de si, até ao final.
Retratando a atmosfera sufocante, mesquinha, fechada e bafienta de Lisboa dos inícios do Estado Novo, deparamos com uma sociedade paternalista, subserviente, em que impera o duplo padrão na consideração das relações entre homens e mulheres.
De resto, a problemática da incompatibilidade de parceiros no interior do casamento; do ciúme e da insegurança masculina face ao receio do «desconhecido» feminino e à sua não adequação a quadros esperados; o desconcerto e revolta face ao desejo inspirado pela mulher, como uma força dominadora à qual o homem se quer subtrair; a visão da mulher como propriedade do homem e a indignação pela sua não resignação/agradecimento ao macho zeloso, além da imemorial tolerância do uso da violência contra a mulher, estão patentes em numerosos escritos da literatura ocidental. Do clássico Otelo, de Shakespeare ao D. Casmurro de Machado de Assis, da Sonata a Kreutzer de Leão Tolstoi ao conto O Vestido Cor de Fogo de José Régio, a ofensa, suposta ou verdadeira, do orgulho masculino, desembocam no afastamento, violência ou assassínio.
Também as mulheres terão os seus meandros...mas são outras histórias. Ainda bem que esta acabou...no livro, pelo menos. Viremo-nos pois, para os clássicos latinos... Outras épocas...outras histórias, talvez.
Kreutzer Sonata, por René François Xavier Prinet |
A Morte de Desdémona- Eugène Delacroix |