Nestes contos da montanha, a paisagem física é, ela mesma, um personagem
que modela os outros, de carne e osso, que ali se movem. Com efeito, estes
camponeses das montanhas dos concelhos transmontanos de Sabrosa, Vila Real,
Peso de Régua e outros contíguos, confinando com a zona do Douro vinhateiro,
comungam com as fragas, penedos, trilhos de montanha e zonas de pastoreio,
pequenos vales de cultivo, rios, ribeiras, pequenas aldeias e vilas,
santuários, caminhos perdidos. Assim, em cada conto temos localizações
geográficas precisas, cuja descrição é marcada pelo seu carácter bravio, e a
despeito deste, pelo elemento humano, neste caso simbolizado pelos socos do
moleiro:
«Galafura vista da terra chá, parece o
talefe do mundo. Um talefe encardido pelo tempo, mas de sólido granito. Com o
céu a servir-lhe de telhado e debruçada sobre o Varosa, que corre ao fundo, no
abismo, quem quiser tomar-lhe o bafo tem de subir por um carreiro torto, a
pique, cavado na fraga, polido anos a fio pelos socos do Preguiças, o moleiro,
e pelas ferraduras do macho que leva pela arreata. Duas horas de penitência.
Lá, é uma rua comprida, de casas com craveiros à janela, duas quelhas menos
alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e uma fonte a jorrar água muito fria.
Montanha.» (in. Maria Lionça)
Neste vasto e pequeno
mundo, as diferenças não deixam de se fazer sentir: há uma relação desconfiada
entre o vale e a montanha, pois que «O Rebel era a fraga cimeira da Mantelinha,
lavada todos os dias pelo bafo do céu; e Provezende fica nos fundegos da
Ribeira, aonde até o ar chega por favor. De forma que não podia de nenhum modo
ter olhos para tamanha claridade.» (in,
Um Filho), ou entre a
aldeia e o centro administrativo, admiravelmente apresentada no conto O Pé Tolo:
«A vila não perdoa à aldeia o ar lavado que lhe dignifica a pobreza, a
feira dos nove, sem comparação nas redondezas, a bela situação que desfruta no
centro do município, e, sobretudo, a rebeldia que se estampa no rosto másculo
dos seus filhos. Homens de timbre e landreiro, rijos de corpo e alma, ninguém
se meta com eles se não está disposto a arriscar a vida. Ora como os de Soutelo
são doutra natureza - pernósticos, troca-tintas e amigos de coser o semelhante
agachados atrás do balcão das repartições -, nunca se entenderam. Daí o
calvário dum convívio difícil e atormentado(...).».
Diferenças entre a paisagem e a própria natureza dos habitantes. E
contudo esta montanha proporciona aos seus filhos uma vida pobre e áspera, que os
empurra à emigração como solução de vida. Não só nos difíceis trilhos que devem
calcorrear:
«Infelizmente, a Senhora da Saúde não
ficava logo ali. Quase no termo de Valongueiras, distava de Abaças uma boa meia
hora. Ainda por cima, caminhos maus. Ou lajes com relheiras que lembravam rugas
em coiro de atanado, ou então saibro ensopado e atoladiço. Trilhos
excomungados!» (in O Roubo)
Também miséria em que tentam sobreviver
e que se denota nas alusões à alimentação e habitação:
«A ceia tinha sido caldo de couves e
castanhas cozidas. Mais nada. A noite estava de invernia. Sobre o telhado caíam
bátegas rijas de chuva. E como a casa era de pedra solta e telha vã, cheia de
frestas, o vento, que parecia o diabo, de vez em quando entrava por um buraco a
assobiar, passava cheio de humidade pela chama da candeia, que se torcia toda,
e sumia-se por debaixo da porta como um fantasma.» (In, O Cavaquinho).
É neste cenário agreste,
que por vezes nem parece morada de gente («Não há em toda a montanha terra
tão desgraçada e tão negra como Saudel. Aquilo nem são casas, nem lá mora
gente. São tocas com bichos dentro.» In,
A Ressurreição) , que
vivem, amam, sofrem, gozam e morrem estes personagens.
4 comentários:
Com base nos meus «trabalhos de casa», aqui vai uma reflexão sobre os contos, quiçá secante, mas foi o que saiu...
Muito bem, Paula, notas de leitura de um livro efectivamente lido. Um "trabalho de casa" honesto, especialmente se tivermos em conta que há quem escreva sobre livros que nunca leu.
Obrigado Paula.
Secante aqui, só se ver o vento de Torga ali na referência ao conto "O Cavaquinho"
A leitura destes teus posts foi hoje o meu lenitivo na hora de almoço antes de voltar ao trabalho árduo :)
Que bom!
Obrigada amigos,
Custódia foi pena n/ teres ido. Sentimos a tua falta.
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