Por vezes esta natureza aparece-nos pródiga em alimentar os seus filhos, com a sua generosa abundância, como
na descrição das colheitas no conto A Revelação:
«Eram fins de
Setembro, na força das colheitas. De manhã cedo, quando a Matilde, (...) chegou
à janela, a veiga parecia uma colmeia. Nas vinhas, as mulheres enchiam cestos,
que os homens, em fila indiana, despejavam nas dornas; e os carros de bois, a
escorrer mosto, cantavam depois pela quelha acima numa alegria de ouriços
carregados. Nos lameiros, os velhos tiravam milho, apanhavam feijões ou
recolhiam abóboras. E nos pomares, trepado, o rapazio varejava as nogueiras,
coalhando o chão. »,
Todavia, este terreno árduo,
fecundado à força do sacrifício do homem, cobra o seu tributo. Esta dimensão da
recolha do fruto da terra, como uma espécie de ritual telúrico, pagão e
ancestral, revela-se no conto A Vindima,
nas encostas hostis apenas resgatadas pela presença vivificante do Douro:
«Encostas
negras, em escada, cobertas de estevas ou eriçadas de zimbro, faziam tudo para
entristecer quem lhes passava ao pé. À esquerda, um despenhadeiro de meter
medo; à direita, uma penedia por ali acima, que só de vê-la faltava a
respiração; ao longe, mortórios escalvados e desiludidos. Mas o grande rio
doirado, que a luz da tarde transformara numa barra cintilante, chamava a si
toda a atenção dos olhos, e a paisagem emergia do abismo engrandecida e
transfigurada. ».
E o autor remete essa faina para
uma dimensão de antigos ritos entre o homem e a terra que o alimenta:
« Dispersa pela encosta, a roga mais parecia
festejar um deus generoso e pagão do que trabalhar. Os geios eram degraus do
Olimpo, onde crescia e se colhia o espirito celeste. Cada canção - um hino de
louvor. E os cestos acogulados, que desciam a escadaria de xisto aos ombros dos
fiéis devotos, numa fila indiana, sonora e ritual - a dádiva desse amantíssimo
Senhor, que só pedia contentamento em troca dos seus frutos.»
Generosa deidade da montanha, que
parece, no entanto, exigir o seu tributo em sangue e dor humanas:« Entretanto,
porque o deus da abundância não se cansava de multiplicar o mosto no lagar,
para arranjar onde o meter, o Vitorino deslizava submisso pela portinhola dum
tonel, tal as vítimas dos sacrifícios antigos pela boca do dragão.»
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