«Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu.»
Blogue da Comunidade de Leitores da Biblioteca de S. Domingos de Rana - Cascais - Portugal
28 dezembro 2017
14 dezembro 2017
INSANUS OU A INSÂNIA DO QUOTIDIANO
Insanus, de Carlos Querido, é um livro de contos editado em Julho deste ano pela Abysmo.
Anteriormente, o autor publicara Salir de
Outrora (2007), Praça da Fruta (
2009), A Redenção das Águas (2013) e Príncipe Perfeito-Rei Pelicano, Coruja e
Falcão (2015). Se o primeiro destes livros se apresenta como uma pesquisa
em torno de documentos históricos relativos aos coutos do Mosteiro Cisterciense
de Alcobaça, Praça da Fruta é uma
narrativa cuja acção decorre nos nossos dias, remetendo embora para os marcos
históricos fundamentais das Caldas da Rainha (em cuja região nasceu e reside o
autor), enquanto os dois últimos livros são romances históricos em torno das
figuras reais de D. João V e D. João II, ambas com ligações conhecidas ao burgo
caldense.
O conto, género
literário agora trabalhado pelo autor, radica «em ancestrais tradições
culturais que faziam do ritual do relato um factor de sedução e de aglutinação
comunitária» (Dicionário de Narratologia de
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes), processo bem patente em duas obras da
tradição europeia: Decameron, de
Boccaccio (séc. XIV), e Heptameron, de
Margarida de Navarra (séc. XVI). É caracterizado pela concisão, brevidade e unidade de efeito (Allan Poe). Certa crítica realça-lhe a capacidade de criar
uma atmosfera em detrimento da acção.
Os contos de Insanus não têm uma leitura linear e
unívoca. Há a considerar uma história de superfície (em que o estranho ou o
fantástico quase sempre imperam) e outra escondida, de segundo nível, a que não
se acede directamente. Neste sentido, é compreensível que a epígrafe da
colectânea tenha sido retirada de Edgar Allan Poe, autor de contos fantásticos
e teorizador do género literário short
story. São vinte e nove contos narrados na primeira e na terceira pessoa
com as vozes das personagens fundidas no discurso do narrador. Tratando-se de
contos curtos (entre duas a sete páginas), estabelece-se um relação próxima com
o poema, o fragmento e até o sketch, tendo
em conta o humor amargo que transparece em alguns deles. As marcas da
ambiguidade e do inesperado estão presentes nas alusões aos universos paralelos
e às dicotomias sombra/luz e mundo real/mundo fictício. A referência em
diversos textos à figura da “Repartição”, opressora e castradora dos sonhos das
personagens, sugere a dimensão do desejo irrealizado face ao desencanto da vida
quotidiana, trazendo à lembrança o poema “O Funcionário Cansado”, de António
Ramos Rosa, do livro Viagem através de
uma Nebulosa (1960): «Sou um funcionário apagado / um funcionário triste /
a minha alma não acompanha a minha mão» – da mesma forma que a sombra não
acompanha o corpo da personagem do conto “Sombras”, antes se solta dele num
registo paradoxal e inquietador.
Não sendo possível
abordar todos os textos da colectânea, referir-nos-emos de forma breve a
“MitoLógico”, “Legião é o Meu Nome” e “Insanus”.
“MitoLógico” retoma a
imagem do unicórnio de Júlio Pomar, pintura realizada em 1955 para o Café
Central das Caldas da Rainha, já referida pelo autor em Praça da Fruta. Porém, a atenção do leitor é conduzida neste conto para
a lição de Kafka, precisamente a que é dada em A Metamorfose. Com uma diferença assinalável: se o infeliz Gregor
Samson não encontra forma de resolver a sua monstruosa transformação, acabando
por morrer para alívio de toda a família, a inominada personagem de
“MitoLógico” descobre talvez a salvação no relacionamento com a sua colega de
curso. Neste sentido, apesar do final ambíguo, regista-se uma mensagem que
diríamos de esperança. História de recorte fantástico, deve ser vista com mais
propriedade na sua dimensão metafórica e simbólica. O género conto, pela concisão
e brevidade, presta-se à transmissão de um conceito moral ou um exemplo. Vários
títulos testemunham esta aptidão que lhe é normalmente reconhecida: Contos & Histórias de Proveito & Exemplo
(Gonçalo Fernandes Trancoso), Novelas
Exemplares (Cervantes), Contos
Exemplares (Sophia). Em “MitoLógico” há indiscutivelmente uma história de
proveito e exemplo: a do adolescente incompreendido pelos seus progenitores, o
recurso a psicólogos para suprir as consequências da falta de amor, a
necessidade de encontrar fora da família, entre os da sua idade, o amparo que
lhe falta em casa. Há aqui, sob a narrativa de superfície, uma mensagem não
explícita para o leitor desvendar. Aliás, a introdução da letra capital L no
cerne do título, desintegrando a estrutura semântica do vocábulo e transformando-o
no sintagma “mito lógico”, estabelece um paradoxo indiciador de que muito mais há
a ler e a compreender para além da peripécia do aparecimento do corno na testa
do protagonista.
“Legião É o Meu Nome”
representa, de certa fora, um diálogo intertextual com o episódio do geraseno
endemoninhado, segundo os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. De que maneira
pode aceitar um defensor dos direitos dos animais, como é o caso do
protagonista do conto, o sacrifício da vara de porcos a que se acolheu, por
vontade de Jesus, a legião de demónios? O conto questiona a mensagem dos
evangelhos e a insensibilidade do Filho de Deus que deixou afogar no mar os
indefesos animais. Marcos dá-nos conta do desespero dos próprios gerasenos perante
aquele “massacre” de consideráveis consequências económicas (a vara tinha cerca
de dois mil porcos), tendo suplicado a Jesus que abandonasse os seus territórios
(Marcos, 5-17). Assim, a alusão ao hermético episódio dos evangelhos e a
incompreensão dos pastores da Igreja (padre Serafim) perante a crise psíquica
do protagonista traduzem-se numa crítica aos que, confundidos por princípios
religiosos, abandonam os homens à solidão e ao sofrimento sem remédio. Aspecto
interessante deste conto é o facto de a narração se efectuar em registo epistolar
através de carta dirigida pelo protagonista à sua mulher, carta datada de
Rilhafoles, 13 de Maio de 2013 ( curioso, tanto o local como a data), não
faltando mesmo um post scriptum.
Finalmente, “Insanus”, o último conto que dá título à colectânea.
Neste texto, segundo um efeito de mise en
abyme, há um narrador que conta uma história sobre o autor-narrador dos
vinte e oito contos antecedentes. Mais uma vez, estão presentes as alusões a
lugares das Caldas da Rainha (fonte das Cinco Bicas) e da sua região (feira
medieval de Óbidos). É na noite da cidade termal, entre o «cheiro tépido de
cinza e enxofre», que ocorre a revolta das personagens contra o criador que
lhes deu a vida (vida de cão, como se lê em diversos contos). É grande o rol
das criaturas: «um tipo que cheira a cinza, um unicórnio, náufragos, suicidas,
uma mulher que tem o corpo do marido a apodrecer em casa, um pistoleiro sem
nome, dois pregadores, um surfista, etecetera, etecetera» – todas saídas das
páginas do livro. Protestam as infelizes por não lhes ter sido dada uma
existência decente, fazendo-as protagonistas de enredos tristes e desgraçados. O autor-narrador sente-se culpado, tem dúvidas
sobre a legitimidade das histórias e pensa em outras soluções que poderia ter
encontrado para não fazer tão infelizes as suas criaturas. Tomado pelas
dúvidas, talvez se tenha lembrado da conhecida frase de Nietzsche: «Não é a
dúvida, mas a certeza que nos torna loucos»
– ele que havia criado os seus contos
ao abrigo de uma frase peremptória sobre a insânia: I became
insane, with long intervals of horrible sanity. E sente-se aliviado quando por fim amanhece e as
personagens contestatárias desaparecem «para cumprir os enredos que são os seus
destinos».
Pela nossa parte, não
tendo motivo para recear personagens de ficção, ficamos a aguardar com
interesse os próximos contos de Carlos Querido.
10 dezembro 2017
Vichy em estilo vintage
Alguns postais ilustrativos das Termas de Vichy, que deixam perceber o ambiente de charme que se vive na história do Comissário Maigret ...
06 dezembro 2017
"Maigret nas Termas" de Georges Simenon, 29 de Dezembro às 21h00
"...
- Reparaste no número de calistas e de ortopedistas?
- Se toda a gente andar tanto como nós... !"
"Então Monsieur Maigret têm-no tratado bem, em Vichy? Até se esmeraram em arranjar-lhe um belo crime ..."
Apontamentos de humor em "Maigret nas Termas" de Georges Simenon
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Livro do mês
30 novembro 2017
DO OUTRO LADO DO ESPELHO
Exposição na Galeria Principal do Museu C. Gulbenkian. O tema é o espelho na Arte. Organizado em função de algumas ideias, deixa-nos a pensar nas possíveis e ausentes extensões de tema tão aliciante, que não se esgota, bem longe disso, no quadro desta exposição, nem sequer se esgota, naturalmente, no quadro das artes visuais (ou plásticas?). Mas ali, logo no segundo espaço expositivo, depara-se-nos O Espelho de Vénus, de Sir Edward Burne-Jones, da coleção do fundador neste mesmo Museu.
Ilustra a ideia "Quem sou eu?"O Espelho Identitário, na senda do mito de Narciso. Mas esta obra, uma pintura tão expressiva, faz-nos evocar uma leitura, Adoecer, de Hélia Correia, que lemos em setembro, e a saga liderada pelos Pré-Rafaelitas.
Ilustra a ideia "Quem sou eu?"O Espelho Identitário, na senda do mito de Narciso. Mas esta obra, uma pintura tão expressiva, faz-nos evocar uma leitura, Adoecer, de Hélia Correia, que lemos em setembro, e a saga liderada pelos Pré-Rafaelitas.
26 novembro 2017
Das boas surpresas
Alexandre, ascensorista
"São cinco metros do rés-do-chão ao primeiro piso, quatro até ao segundo, outros tantos até ao terceiro. Por dia são mais ou menos setenta viagens completas (treze metros), cinquenta até ao segundo piso (nove metros) e trinta até ao primeiro (cinco metros). Cerca de mil e quinhentos metros a subir e os mesmos a descer. Três mil metros por dia, dez mil e quinhentos por semana, quase três mil e duzentos quilómetros verticais por ano (descontando os dias de pouca afluência)..."
in "Se Eu Fosse Chão", de Nuno Camarneiro
A sessão de sábado de "O Escritor no seu Labirinto" com o Nuno Camarneiro, deu-me a conhecer o escritor. E que boa surpresa que está a ser este "Se Eu Fosse Chão". Histórias soltas, de hóspedes que vão passando pelos diferentes quartos de um hotel e outras, que nos apresentam alguns dos seus funcionários.
25 novembro 2017
Plano de leituras 2018
"La liseuse" H. Matisse 1895
1º Trimestre - Escritores Portugueses
26 Jan - A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe
23 Fev - Nem todas as Baleias voam, de Afonso Cruz
23 Mar - Enseada amena, de Augusto Abelaira
2º Trimestre - Literatura do Mundo
27 Abr - O Deus das Pequenas Coisas, de Arundhati Roy
25 Mai - Os cadernos de Dom Rigoberto, de Mario Vargas Llosa
29 Jun - Mancha Humana, de Philip Roth
3º Trimestre - Literatura de Viagens
27 Jul - Viagens, de Marco Polo
31 Ago - Na Patagónia, de Bruce Chatwin
28 Set - O caminho imperfeito, de José Luís Peixoto
4º Trimestre - Nuestros Desconocidos Vecinos
26 Out - A Velocidade da Luz, de Javier Cercas
30 Nov - O pintor de batalhas, de Arturo Pérez-Reverte
28 Dez - Crónica do rei pasmado, de G. Torrente Ballester
22 novembro 2017
Conversas na biblioteca
No próximo Sábado, 25 de Novembro, pelas 16h00. Mais informação na Agenda Cascais:
http://www.cm-cascais.pt/evento/o-escritor-no-seu-labirinto-nuno-camarneiro
15 novembro 2017
CRIMES CAPITAIS
Primeiro foi o casal ilícito Magda Gomes da Luz e António Júlio dos Reis Lopes. Depois, o génio informático Illan Levan e a sua irmã Carolina. São muitos crimes juntos! Estou praticamente no fim da leitura, naquele ponto em que o inspector Jaime Ramos anda à procura de um jota. E que dizer da aparição do ex-ministro Carrilho? Não é que parece uma premonição das pulsões criminais da filosofante figura? Felizmente que nada se confirmou, era alguém que se mascarava de filósofo. Bem, não digo mais para não estragar a surpresa dos leitores.
03 novembro 2017
"Um Crime Capital" de Francisco José Viegas, 24 de Novembro às 21h00
O suicídio (ou a falta dele) e aponte
"... A ponte do Freixo não Isaltino. Um suicídio a sério precisa de cenário, de ambiente, de um certo ar romântico. Ninguém vai suicidar-se da Ponte do Freixo. Daqui a uns anos não digo que não, mas por enquanto aquilo é muito betão. Um suicídio no Porto precisa de um bocadinho de história, de sombras, de folhas mortas e até de gente à volta...."
in "Um Crime Capital" de Francisco José Viegas
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Francisco José Viegas,
Livro do mês
25 outubro 2017
Perspicácia, meus senhores, perspicácia…
imagem da net
E quem é que a partir da observação de umas simples lunetas, consegue chegar a estas conclusões? Elementar meu caro Watson! Mr. Holmes, é claro!
“ … Deve procurar uma mulher
de bom porte, elegantemente vestida, com um nariz bastante largo e os olhos
juntos. Com a pele franzida, expressão inquisidora e provavelmente também um
pouco corcunda. Parece que visitou um oculista, duas vezes pelo menos, durante
os últimos dois meses, e, visto que as suas lentes são de considerável
graduação e os oculistas não são muitos, não será muito difícil localizá-la” …
in "A Aventura da Luneta de Ouro"
11 outubro 2017
"As Aventuras de Sherlock Holmes" de Arthur Conan Doyle - 27 de Outubro às 21h00
Então vamos lá testar os nossos dotes de detectives e o nível da nossa argúcia.
Em apreciação:
A Aventura dos Seis Napoleões
A Aventura da Escola da Abadessa
A Aventura da Luneta de Ouro
A Aventura de Abbey Grange
A Aventura dos Bonecos Dançantes
A Aventura da Casa Vazia
A Aventura da Ciclista Solitária
Todos incluídos no livrinho acima...
25 setembro 2017
JOHN RUSKIN EM "ADOECER"
John Ruskin, o influente crítico inglês, pintado por Millais junto das quedas de água dos Trossachs. Na verdade, o retrato só seria apurado em Londres, meses mais tarde. «Foi o trabalho mais odioso que fiz», confessou John Millais. Era no ano de 1854, o da anulação do casamento do crítico com a sua esposa Euphemie. Casamento não consumado. Entre a senhora Ruskin e Millais corria «uma linguagem eloquente», todos os sabiam. A inteligência e a carne têm destas coisas, não tentemos explicá-las.
22 setembro 2017
WILL YOU WALK INTO MY PARLOUR?
Uma das
muitas referências literárias contidas em Adoecer,
de Hélia Correia, é a do poema The
Spider and the Fly, de Mary Howitt (1799-1888), sobre uma aranha que
convida uma ingénua mosca a visitar a sua teia: «Will you walk into my
parlour?» Exemplo do método usado pelos sedutores para atingirem os seus
objectivos, a referência surge na parte da narrativa em que Lizzie permanecia “aprisionada”
na teia de Chatham Place e Gabriel, por imperativos da criação artística, partira para casa de
William Bell Scott em Newcastle. «A aranha do poema é masculina», diz-se no
texto de Hélia e vê-se na imagem.
20 setembro 2017
RED HOUSE, Bexleyheath, England
Significativa para a história da Arquitetura e do Design, a "Red House", situada em Bexleyheath, foi projetada em co-autoria pelo arquiteto Philip Webb e William Morris, fundador do movimento "Arts and Crafts". Construída em 1860, surgiu do desejo de Morris de viver numa casa rural, fora do ambiente insalubre de Londres, e corresponde às ideias que defendia, inspiradas num certo medievalismo, mas sustentando um retorno ao essencial, aos materiais primitivos e ao artesanato, como reação à prevista uniformização industrial, mas sobretudo ao gosto dominante, eivado de ecletismo e falho de caráter. Morris, assim como Ruskin (um dos muitos personagens de "Adoecer", de Hélia Correia) e seus seguidores, são considerados pioneiros do Movimento Moderno (Nicolaus Pevsner). Também aqui pontua o paradoxo, tema que não cabe agora tratar.
Alguns artistas pre-rafaelitas, protagonistas de "Adoecer" , nomeadamente Dante Gabriel Rossetti (e Edward Burne-Jones) colaboraram na decoração da casa de William Morris, subsistindo ainda pinturas murais deste último.
Atualmente, a casa está transformada em museu e centro de atividades:
https://www.nationaltrust.org.uk/red-house
12 setembro 2017
CRANBOURN ALLEY, 1850
O primeiro trabalho de Lizzie Siddal como modelo foi para o quadro de Walter Deverell inspirado em Twelfth Night, de W. Shakespeare, cena IV do segundo acto. A figura de Lizzie (Viola) surge à esquerda, disfarçada de rapaz, não passando despercebido o ruivo dos cabelos. No livro Adoecer, de Hélia Correia, é narrado o processo de recrutamento da jovem aprendiza de modista de chapéus, futura musa da Irmandade Pré-Rafaelita.
08 setembro 2017
“Adoecer” de Hélia Correia – 29 de Setembro às 21h00
Sinopse
“Havia nela como que uma falha que provinha talvez da exaustão e da deficiência alimentar, dando-lhe um ar furtivo, de gazela, que fez cair as apresentações.
Lizzie passou para detrás da porta abandonada que servia de biombo e regressou vestida de rapaz. Apanhara o cabelo sobre a nuca. Mostrava as pernas e isso produzia um curioso efeito assexuado. Gabriel adiantou-se e começou a ocupar-se da figura que faltava, não nos papéis de esboço, mas na tela. As personagens masculinas já se achavam muito avançadas. Ele posara para bobo. Os pré-rafaelitas provocavam situações de entreajuda em que existia, a par de exibição, sinceridade.
Deverell e Millais arrefeciam, de pé, imóveis e a perder entusiasmo. Viam em Lizzie a rapariga magra e de feições irregulares que até então não tinham visto. A narrativa de Walter, que avassalara o próprio narrador, deixava de exercer influência e a temperatura dos seus corpos ressentia-se. Esfregavam os braços, percebendo toda a impiedade do Inverno. Observavam Rossetti e Miss Sid que estavam sós, naquilo que talvez fosse o encontro do pintor com o modelo. Porém sentiam desconforto, como se presenciassem uma cena íntima.
Lizzie, que mantivera a posição sem vacilar nos dias anteriores, vergava as costas, inclinada para o chão. Era um abatimento poderoso sob o qual circulava alguma glória. John Everett Millais compreendeu a origem do fascínio de Miss Sid. Tinha um corpo selado na tragédia, um apetite sacrificial. "Hei-de pintar esta mulher", pensou. Imaginava-a num cenário de narcisos. Não sabia que estava a vê-la morta.”
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Livro do mês
16 agosto 2017
O MAR DOS AÇORES
Ilha de S. Miguel, fotografia de Dezembro de 2015
O MEU MUNDO NÃO É DESTE REINO, capítulo 3, exemplo de uma das diversas alterações introduzidas pelo autor na edição de 2015:
«Cadete
garantia, por um sofisma da sua mente complicada, que a cor do mar dos Açores
era o branco. Porém, as crianças sustentavam que não existia nenhuma cor para
definir a eternidade da água. A sua contínua convulsão, ao ser remexida pelos
ventos invernosos da Ilha, com o branco da espuma a sobrepor-se à cinza do
Inverno, fazia com que o mar se assemelhasse a uma contínua e laboriosa
sucessão de ninhos de répteis em movimento flutuante sobre as cristas das
águas. Mais parecia uma paisagem picotada a pontos brancos, em toda a extensão
visual. » ------- 8ª edição, revista e
reescrita pelo autor.
«Cadete garantia, por uma espécie de sofisma da sua mente
complicada, que o mar dos Açores era branco. Porém, as crianças sustentavam que
nenhuma cor deste mundo podia definir a eternidade da água, porquanto essa
contínua convulsão aproximava o seu aspecto não da saliva das cobras e dos seus
ninhos, mas da humidade sem cor de qualquer réptil. Era um mar de rodilhas, um
mar asmático, de lixívia em tecidos puídos e sem obra, e a sua magríssima água,
rochosa e salina, expelia para a terra uma respiração de sono sem pálpebras.»
------- edições anteriores.
07 agosto 2017
CAIU UM AVIÃO!
«JOÃO-MARIA ESTAVA DE CÓCORAS, FAZENDO
CACA NO QUINTAL, QUANDO TUDO ACONTECEU. PERCEBEU, PRIMEIRO, QUE UM RUÍDO
SEMELHANTE AO DESMORONAR DAS FRAGAS NUMA PEDREIRA crescia de longe ao seu
encontro e vinha sobrepor-se à sonatina das ondas e ao tráfego agoirento das
cagarras.» --- JOÃO DE MELO, O Meu Mundo não É deste Reino, Capítulo
13, Edição Visão / D. Quixote, Julho de 2003.
Agora dirão as leitoras tratar-se de mais
um exemplo de literatura escatológica. Imagino a justa indignação, as leituras
da Comunidade destravadas pelas vertentes lívidas do mau gosto. Por acaso, até é um fragmento importante do imaginário da Ilha: o acidente do Lockheed
L-749-79-22 Constellation, vôo Paris-Nova Iorque, em 28 de Outubro de 1949.
Deu-se no Pico da Vara e nele morreram 48 pessoas, entre elas, figuras
notórias à época, o pugilista Marcel Cerdan, a violinista Ginette Neveu e o seu
irmão Jean Neveu, pianista.
Leia-se que é um belo capítulo do livro.
01 agosto 2017
"O Meu Mundo Não é Deste Reino" de João de Melo - 25 de Agosto às 21h00.
Sinopse
João de Melo apresenta-nos uma crónica dos prodígios que fazem a história de uma comunidade rural perdida algures nos Açores. Narrativa mítica, sem cronologia, que começa in illo tempore (em português arcaizante) e prossegue seguindo o fio das ocorrências fantásticas (a chuva dos noventa e nove dias, o dia em que os animais choraram, o dia em que se viu a outra face do sol, a morte e ressurreição de João Lázaro) e das vidas de personagens excessivos e arquetípicos (um padre venal, um regedor hercúleo e despótico, um curandeiro e um santo) que povoam um lugar perdido nas brumas do tempo, no outro lado da ilha, progressivamente devolvido à comunicação com o mundo.
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João de Melo,
Livro do mês
Ding, ding, ding .... chamada à ordem!
Isto de conduzir um rebanho, mesmo de bons e interessados leitores nem sempre é coisa fácil! A paixão pelas leituras e o entusiasmo do momento, leva-nos muitas vezes àquela característica tão própria dos lusitanos que é falarmos todos ao mesmo tempo e, por vezes, a Babilónia instala-se antes que demos por isso. Mas na última sessão, onde discutimos o muito elogiado "Cântico Final" de Vergílio Ferreira, eis que surge uma bela campainha, para ajudar na condução dos trabalhos. Chegou discreta e elegante, mas certamente vai vibrar e fazer-se ouvir energicamente sempre que a ocasião o justifique. Bem vinda Miss Ding, Ding....
25 julho 2017
EXISTENCIALISMO E LITERATURA
«Só meditando profundamente no que significa a morte, é que nós poderemos ver bem o que com ela se perde e o valor disso que se perde. Por outro lado, a morte é uma prefiguração do que de limite, de fim, preside a todos os actos da vida, já que a cada instante nós estamos de algum modo a realizar actos irremediáveis. A meditação da morte não é pois um fim, mas um meio. Meio de valorizarmos a vida, meio de assim mesmo respeitarmos a vida nossa e alheia, meio de reflectirmos sobre o irremediável do que formos fazendo, meio, em suma, de encararmos a sério esse facto extraordinário que é a vida do homem.»
--- VERGÍLIO FERREIRA, "Existencialismo e literatura".
24 julho 2017
"CÂNTICO FINAL", MEDITAÇÃO SOBRE A MORTE
Francisco de Goya, Fuzilamentos de três de Maio de 1808
Abriu a revista, e Mário sofreu uma ataque de agonia. Era uma reportagem sobre fuzilados de uma revolução num país distante: fotografia de um dos condenados bebendo o cálice de rum; fotografia do instante do fuzilamento («como um quadro de Goya» - dizia o repórter).
--- VERGÍLIO FERREIRA, Cântico Final, cap. X.
17 julho 2017
AS EGAP-EXPOSIÇÕES GERAIS DE ARTES PLÁSTICAS EM "CÂNTICO FINAL"
Diário da Manhã, órgão oficioso da União Nacional salazarista, na sua edição de 9 de Maio de 1947
Uma das
perspectivas de Cântico Final, de
Vergílio Ferreira, é a que se prende com o debate sobre arte que nos anos do
pós-guerra teve lugar entre os intelectuais e artistas portugueses. No seio da
corrente neo-realista, preparavam-se as grandes polémicas dos anos cinquenta,
de que as referências aos críticos Ramiro e Rebelo se constituem como uma evidente
alusão ficcional. De interesse, a referência a uma das Exposições Gerais de
Artes Plásticas (talvez a de 1947),
certames que agregavam artistas independentes – leia-se, não vinculados às
iniciativas do SPN/SNI – procedentes de diversas orientações estéticas, do
neo-realismo ao abstracionismo. Em que corrente se integraria o “Galo” do
protagonista Mário?
Cerca de cem
artistas, não só de diversas tendências estéticas mas de diferentes ramos da
arte estiveram presentes na I Exposição, a de 1946. Ao princípio, o poder
constituído não desconfiou de nada; depois é que se deu conta do que ali se preparava
de subversivo. As EGAP realizaram-se
anualmente de 1946 a 1956, com excepção de 1952, ano em que a Socidade Nacional
de Belas-Artes se encontrava encerrada pela
PIDE.
12 julho 2017
ONDAS DO MAR DE VIGO
7-7-2017, Estação de Vigo-Guixar, a apanhar o comboio para Oporto com o jogral MARTIM CODAX no pensamento.
CANTIGA D´AMIGO
Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
e ai Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
e ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
e ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado
por que ei gram cuidado!
e ai Deus, se verrá cedo!
11 julho 2017
"Cântico Final" de Vergílio Ferreira - 28 de Julho - 21h00
A
abrir:
“Por
uma manhã breve de Dezembro, um homem subia de automóvel uma estrada de
montanha. Manhã fina, linear. O homem parou um pouco, enquanto o motor arrefecia,
e olhou em volta, fatigado. Aqui estou. Regressado de tudo. Pelo vale extenso
até a um limite de neblina, viam-se aqui e além indícios brancos de aldeias,
brilhando ao sol. Que dia é hoje? Pelos campos perpassava uma alegria estranha,
talvez do sol e daquele fundo silêncio a toda a volta, sem uma voz repentina
das que sobem e vibram nas manhãs de trabalho. E de súbito lembrou-se: para o
fundo do vale, ouviu o dobre dos sinos do Freixo. Manhã de domingo, manhã de
infância, sinos de outrora…”
In
“Cântico Final” de Vergílio Ferreira
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"Cântico Final",
Livro do mês,
Vergílio Ferreira
29 junho 2017
INGRES, MUSEU DO LOUVRE
2014, Museu do Louvre, sob o encantamento de Ingres... O Elogio tem de bom trazer estas coisas à memória.
ANUNCIAÇÕES
Esta, ortodoxa, do pintor Andei Rubliov (lembrar o filme de Tarkovsky), na Catedral da Anunciação, Kremlin de Moscovo.
...É como se a conversa tivesse terminado, nada há a acrescentar...Fiat! Bem à maneira ortodoxa.
...É como se a conversa tivesse terminado, nada há a acrescentar...Fiat! Bem à maneira ortodoxa.
27 junho 2017
CANDAULES, REI DA LÍDIA
WILLIAM ETTY (1787-1849), Candaules, King of Lydia, Shews his Wife by Stealth to Gyges, One of his Ministers, as She Goes to Bed (1830), óleo sobre tela.
23 junho 2017
SOBRE O "ELOGIO DA MADRASTA"
Impressões de uma amiga, não frequentadora da nossa Comunidade, que leu o livro há alguns anos:
Llosa, no Elogio da Madrasta,
certamente uma consistente composição narrativa, de trechos interpolados e
magníficas descrições de pinturas famosas, eróticas, todavia de anteriores
épocas, enquadradas em rica e poética intertextualidade, foi obra lida há tempos.
Tesouro de construção literária, deixou-me azedume face ao enteado,
adolescente em afirmação de poder contra e sobre o feminino, a madrasta,
mulheraça de contornos idênticos ao do seu marido, superior na hierarquia do
jovem, não a empregada doméstica, sua subordinada, a que depois se
lança - as mulheres da casa, a mulher instanciada nas mais próximas, sei lá… Se
as primeiras emoções sexuais assim se esboçam... patriarca no poleiro, a
decidir e o adolescente já a querer substituí-lo, desprezando e servindo-se do
outro (como a madrasta dele, claro) , está-se face a perversão das relações
desejáveis em comunidade - não no mero sentido sexual. Espelho de certo
meio social, infecção de duas gerações? Sátira? (…) E um rasto de certo humor
discreto. Contudo a beleza da escrita não me empolga, excessivo para a
temática: seres submetidos a impulsos por si mesmos, sensualidade pela
sensualidade que nisso se esgota, ternura zero, encerrados seus autores num
casulo, não há outros nem cosmos, mais nada. Estranho. Jogos num campo único,
sem mais sopro vital. Lembro os rituais corporais, os banhos, e isso é
interessante, iniciáticos, mais velhos a passar testemunho ao adolescente,
certo plano mítico. Muitas vidas comunitárias ( penso em certo monaquismo,
como em Quram, que visitei) dispunham de inúmeros
reservatórios de águas destinadas a sucessivos banhos. Atenção a uma
corporalidade neste caso banida, expandida em Llosa. Curiosa ritualização,
evoca-me a sacralidade inicial, SACER no indoeuropeu, que era a fecundidade,
tudo o que faz crescer, e inchar, GONFLER. Acento na fisicalidade, sem
contornos além do encontro de corpos. Todavia, do que retive na memória, é uma
duplicidade, inocência-perversão o foco da obra: a relação madrasta-enteado e o
desejo mútuo, mas já acima apontei como senti tal acordar para a sexualidade.
Vejo-o negativo, não penso que deva seguir o desejo por vias de vontade de
domínio, de manipulação, de denúncia - a redacção e sua leitura não são
inocentes; como nem a frase final, tipo, «mas ela não é minha mãe»,
incesto arredado; ou o desvio de «amar a mãe», «usar a madrasta», de cabeça um
tanto oca. Creio ser mais o determinar-se a usurpar o poder familiar do pai.
15 junho 2017
PARA QUEM NÃO SAIBA...
... A HISTÓRIA TEM CONTINUAÇÃO
«Bateram à porta, Dona Lucrécia foi abrir e, retratada no vão, com o fundo das tortuosas e encanecidas árvores do Olivar de San Isidro, viu a cabeça de caracóis dourados e os olhos azuis de Fonchito. Tudo principiou a girar.»
11 junho 2017
Sinopse
Lucrécia e dom Rigoberto vivem em constante felicidade. Ela, uma mulher que acaba de completar 40 anos, nada perdeu da sua elegância e sensualidade; ele, no segundo casamento, descobriu por fim os prazeres da vida conjugal. Juntos, crêem que nada pode afetar esse idílio, cheio de fantasias e de sexo. Alfonso, ou Fonchito, filho de dom Rigoberto, parece ser o único empecilho; ama demais sua mãe, Eloísa, para aceitar a chegada de uma madrasta. Mas até ele acaba por ser conquistado pelos encantos de dona Lucrécia. O amor do menino pela sua madrasta, entretanto, vai muito além do que se esperaria de uma criança, desenhando uma linha ténue entre a paixão e a inocência que mudará o destino de cada um deles.
Etiquetas:
"O Elogio da Madrasta",
Livro do mês,
Mário Vargas Llosa
01 junho 2017
NÓS, OS DE VONDELPARK
MANUEL TEIXEIRA-GOMES, novela Deus ex machina:
«Um dia que eu ficara de me encontrar
em Vondel-Park – próximo ao Rijsks-Museum – com vários elegantes de ambos os
sexos para dali seguirmos em excursão de
patinagem até Harlém, logo à entrada do parque, numa volta estreita e mal
concorrida do lago, a atenção prendeu-se-me irresistivelmente numa rapariga
encantadora, de farta e negra cabeleira solta, que patinava sozinha, e fiquei-me
a contemplar-lhe os graciosos movimentos sem mais me lembrar de que a poucos
metros de distância era impacientemente esperado por um numeroso grupo de
amigos.» --- A acção desta novela decorre no Inverno de 1890. Cheguei a Vondelpark
tarde de mais, precisamente na manhã do dia de Natal de 2013 – 123 anos depois de Manuel Teixeira-Gomes –,
e já não vi a rapariga encantadora de farta e negra cabeleira solta. Naquela altura o lago não
estava gelado e àquela hora da manhã nenhuma rapariga por ali andava, mas
alegrei-me de dar com a estátua do poeta Joost van den Vondel (1587-1679), figura maior
do século de ouro holandês. É ele, como se percebe, que dá nome ao parque. A estátua, inaugurada em 1867, não teria passado despercebida ao escritor algarvio, mas que interesse podia ter a pedra e o bronze ante os movimentos graciosos da patinadora?
31 maio 2017
A LITERATURA ERÓTICA EM 1935
Novelas Eróticas, edição "Seara Nova" de 1935 (ano da morte de Fernando Pessoa), com advertência aos leitores: LEITURA PARA ADULTOS. Fica-se a saber que teve uma tiragem de 300 exemplares FORA DO COMÉRCIO. --- Fotografias obtidas ontem em exemplar de biblioteca pública.
30 maio 2017
O SÍTIO DA MULHER MORTA
Uma das novelas eróticas de Manuel Teixeira-Gomes que ontem reli na BN nesta edição preciosa. De um ensaio de Urbano Tavares Rodrigues, respigo a seguinte nota a respeito de outra novela, a "Deus ex machina": « O que nos impressiona desde logo, como aliás sucede com a maior parte das novelas e contos de Teixeira-Gomes, é a desproporção entre a riqueza do discurso e a relativa pobreza da estória (...)» Ora isto fez-me lembrar a nossa leitura de Ronda das Mil Belas em Frol e as apreciações atinentes de algumas leitoras. De qualquer forma, tendo em conta o conjunto da obra, Mário de Carvalho ainda está uns furos acima de Manuel Teixeira-Gomes.
25 maio 2017
PHILÉAS LEBESGUE, POETA E AGRICULTOR
Mais n´est-tu pas toi même un
jet d´eau qui s´irise
Et qui vers l´infini s´élance et
puis se brise?...
Conto "Cordélia", de M. Teixeira-Gomes, epígrafe de Philéas Lebesgue (1869-1958). O poeta francês, que entre 1911 e 1933 esteve por três vezes em Portugal, correspondeu-se com o autor das Novelas Eróticas e ainda com Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Téofilo de Braga e Bernardino Machado. Mais informação aqui: http://www.maisons-ecrivain-picardie.fr/ecrivains-celebres-picardie-biographie-La-maison-de-Phileas-Lebesgue-fr-15.html
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