(Cena do filme "A Festa de Babette" de Gabriel Axel)
Na sessão da passada sexta-feira, fomos brindados com um excelente ensaio do nosso Coordenador Manuel Nunes, sobre o conto "A Festa de Babette". Aqui fica para quem não pôde estar presente e também para uma releitura mais atenta dos que por lá estiveram...
"De
acordo com um preceito que remonta a Horácio, poeta latino do século I a.C., o
texto literário deve servir para instruir e deleitar. Ou seja, deve ser uma
fonte de prazer para o leitor e cumprir, ao mesmo tempo, propósitos de natureza
ético-pedagógica. Isto parece tão óbvio que quase escusava de ser dito a quem
lê e partilha leituras numa comunidade de leitores. Temos então, repita-se, “instruir
e deleitar”.
Gonçalo
Fernandes Trancoso, autor português do século XVI, publicou em vida a sua obra Contos e Histórias de Proveito e Exemplo cujo
título, como é evidente, remete para essa função eminentemente ética e pedagógica
da escrita literária em geral e do género conto em particular.
O
conto A Festa de Babette, de Karen
Blixen, é isso mesmo, um conto de proveito e exemplo. Proveito por nos instruir
sobre tantas coisas da vida, exemplo por nos indicar caminhos a seguir,
e
isto sem deixar de nos deleitar pelos lances curiosos e engraçados com que nos
deparamos ao longo do texto.
Em A Festa de Babette temos uma história
cujas principais personagens se dispõem como que em pentagrama: duas mulheres,
dois homens e uma terceira mulher que é o eixo do enredo. Tanto as duas
mulheres (as irmãs Martine e Philipa, filhas de um deão e profeta luterano da
Noruega profunda) como os dois homens (o oficial hussardo Lorens Loeuwenhielm e
o cantor Achille Papin da Ópera de Paris, apaixonados por cada uma das irmãs)
se cruzam e entrelaçam com Babette Hersant, chefe de cozinha do Café Anglais de
Paris e communarde activa nas barricadas
de 1871, forçada depois ao exílio pelo fracasso da acção revolucionária.
Lembremos
os dois apaixonados das irmãs. O primeiro não foi capaz de revelar o seu amor,
seguindo como compensação uma ambiciosa e fulgurante carreira das armas; o
segundo amou e revelou o seu amor mas, castigado pela rejeição, não logrou avançar
na carreira artística: faltava-lhe a outra face de si, aquela que pelos dotes
de cantora lírica completaria e daria sentido à sua arte.
Tomemos
as palavras do Salmo 85, citadas pelo deão e inscritas em várias passagens do
texto:
«A
Misericórdia e a Verdade se reuniram; a Virtude e a Ventura trocaram um beijo».
Ultrapassando
o sentido bíblico e cristão desta passagem do salmo, a Misericórdia deve ser
entendida como o amor e a Verdade como a sua revelação. É desta forma que a
Virtude e a Ventura se prestam a trocar um beijo.
Com estas
palavras do salmo se abre o discurso do General Loewenhielm na festa de
Babette, sabendo-se que esse discurso é o resgate do seu passado rumo a um
futuro marcado pelos valores espirituais. Diz-se no conto que no fim da sua
carreira, com o peito repleto de medalhas, o general se preocupava com a alma. Mas
não lhe chamemos alma, demos-lhe outros nomes: verdade, equilíbrio, paz, solidariedade,
amor – estes os rostos múltiplos da alma, os seus mais belos rostos.
E a
graça, também referida pelo general como divina, o que é a graça? Alijada toda
a carga religiosa e sobrenatural, a graça é aquilo que nos é revelado pela
razão e pela inteligência emocional: a vontade de sermos justos, de não ofender
ou maltratar os outros, de sermos humanos procurando os melhores caminhos para
a felicidade. Era esta graça que o general quereria albergar em si. Por isso o
seu discurso foi a melhor iguaria da festa de Babette, melhor que o amontillado, os blinis Demidoff, as cailles
en sarcophage ou as uvas só comparáveis em excelência àquelas que os filhos
de Israel encontraram no vale do Escol.
O
melhor da festa foi também o desapego material de Babette, gastando os seus dez
mil francos num jantar que foi um hino à vida e ao valor da amizade e da
memória. Um jantar que reconciliou todos com todos e cada um consigo mesmo,
ainda que no final não se lembrassem os membros da congregação dos pratos que haviam
desfilado pela mesa. É o sensível dos sabores a ser ultrapassado pelos sentimentos
do amor e da reconciliação.
Sim,
porque é de reconciliação que se trata. Reconciliação de Babette com a sua arte,
pois o título da última parte do conto é justamente “A grande artista”.
Reconciliação com os nomes grados de nobres e burgueses que apreciaram a sua
cozinha nos jantares do Café Anglais, esses inimigos de classe que combateu até
ser derrotada nas barricadas de Paris. De acordo com o testemunho do General
Loewenhielm, o Coronel Gallifer, frequentador habitual do Café Anglais, exaltava
o génio culinário da chefe de cozinha, o romance de amor que escrevia em cada
jantar em que punha a mão.
Há
um sentido alegórico em tudo isto: a arte é vida e pode a vida passar pelos
transes mais difíceis sem que esmoreça o seu valor. A arte de Babette valia
mais que os dez mil francos e ela provou-o. Porque a arte só é dinheiro para os
artistas fingidos e enganadores, os que vendem e se vendem (as duas acções em
simultâneo) sem atenderem ao espírito da criação do belo.
O
hino dos irmãos da congregação continha dois versos nos quais se ouvem as
palavras do Evangelho de Mateus, capítulo 7, versículos 9 e 10: «Irás
dar uma pedra ou um réptil / ao teu filho que implora o alimento?»
Assim
como diz o evangelista, também o artista deve dar o pão em vez da pedra, e o
peixe em vez da cobra aos que buscam como alimento a sua arte.
Por
tudo isto, A Festa de Babette lê-se
com a enorme alegria de quem está na presença de um texto singularmente belo.
E
para finalizar, uma pequena nota exclamativa: como este conto de apenas quatro
dezenas de páginas é capaz de nos interpelar como não nos interpelam alguns
grossos volumes de centenas!"
MJMN,
São Domingos de Rana, 25-10-2024