Alguém
escreveu que este livro é uma fábula de "relato violentamente
satírico sobre a figura de Salazar". Vamos ler e perceber a razão desta opinião…
Blogue da Comunidade de Leitores da Biblioteca de S. Domingos de Rana - Cascais - Portugal
Alguém
escreveu que este livro é uma fábula de "relato violentamente
satírico sobre a figura de Salazar". Vamos ler e perceber a razão desta opinião…
2024
começou com o habitual jantar anual da Comunidade que teve lugar no Dia de
Reis. Celebrámos a chegada de tão emblemáticas majestades e celebrámos,
sobretudo, o nosso amor pelos livros e tudo o que vem no seu caminho.
O primeiro trimestre recebeu o mote “Talvez Romance Histórico” e por conta disso o mês de janeiro começou em grande: “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde” do escritor Mário de Carvalho fez as delícias de todos e foram muitos os que leram e estiveram presentes nesta sessão: 28 leitores! Numa autêntica jornada pela língua portuguesa, o escritor apresenta-nos o dia a dia da fictícia cidade romana de Tarcisis, mas que mostra toda a estrutura e organização sociopolítica de uma qualquer real cidade romana. Os acontecimentos descritos decorrem no séc II e são-nos expostos pela voz de Lúcio Valério, magistrado da cidade, um homem bom que tenta desenvolver o seu trabalho de forma justa, mas sem deixar de corresponder à ordem emanada de Roma, numa época em que os primeiros grupos de Cristãos se começam a manifestar, colocando em causa tudo o que até aí era norma em termos de Deuses e religiões. Uma imensa riqueza de detalhes, fazem do romance quase que um manual de história sobre a civilização romana.
Logo no início de fevereiro, alguns dos nossos leitores marcaram presença no Supremo Tribunal de Justiça, para a apresentação do romance “Alegações Finais” do nosso conhecido e estimado Carlos Querido. Durante a sua intervenção, o escritor aludiu à nossa Comunidade de Leitores e à nossa participação em anteriores sessões sobre obras suas, nomeadamente as que tiveram lugar na Feira do Livro em torno do romance histórico “A Redenção das Águas” e da coletânea de contos “Habeas Corpus”. Ficou no ar a possibilidade de o convidarmos a participar numa futura sessão, sobre este seu último romance.
O livro do mês remeteu-nos
para a II Guerra Mundial e a participação de um grupo de mergulhadores de
combate da Regina Marina italiana neste conflito. “O Italiano” de Arturo Pérez-Reverte trouxe-nos a história dos Maiali,
autênticos torpedos humanos que detonaram vários navios aliados no
Mediterrâneo. O enredo conta-nos a história da livreira Elena Arbuès e do seu
envolvimento com o oficial Teseo Lombardo e a ação desenrola-se na Baía de
Algeciras e no Rochedo de Gibraltar. Baseado em facto reais esta história
aparece-nos sobre a perspetiva do lado contrário aos aliados, o que não é muito
comum, trazendo à superfície o facto dos bons não estarem todos do lado
ganhador nem os maus do lado perdedor. Um romance muito bem escrito com algumas
descrições quase cinematográficas, deu-nos a conhecer um lado pouco falado da
guerra. 25 pessoas presentes e 5 que não leram.
Março começou bem, logo no dia 1, com a apresentação do livro de poesia “Pó Ético” da
nossa companheira de leituras Marta Meireles. Um momento bonito partilhado
por familiares, amigos, alunos e muitos dos membros desta Comunidade. Ficámos a
conhecer as palavras que escreve de forma interventiva, ora mordaz ora irónica,
divertida, inteligente, acutilante e muito inconformada. Que boa surpresa que
foi!
A meio do mês mais uma atividade fora de portas: manhã de poesia no Cemitério dos Prazeres, onde homenageámos alguns dos poetas, ali eternamente residentes: Mário Cesariny, Jorge de Sena, Cesário Verde, Al Berto, António Ramos Rosa e Alcipe, Marquesa de Alorna. Com um programa bem delineado e coordenado pelo Manuel Nunes e pela Paula Silva, para além de ficarmos a saber um pouco mais da vida daqueles poetas, foram ditos vários dos seus poemas pelos nossos inspirados leitores. Uma bonita manhã de quase Primavera que terminou com mais um salutar almoço convívio.
O autor do mês foi Alves Redol com o livro “Os Reinegros”. Publicado 3 anos depois da sua morte, o romance neorrealista debruça-se mais uma vez sobre as vidas sofridas dos mais desfavorecidos. Um romance urbano, passado nos tempos conturbados e febris da implantação da primeira república, oferece-nos algumas personagens de grande densidade psicológica, nomeadamente Alfredo e Luísa, o casal Reinegros. Uma luta constante, mas algo inglória, contra a miséria, a pobreza e o surgimento do que se pode chamar de consciência política e social, foram os temas centrais da trama. 21 leitores, dos quais 3 não leram, proporcionaram uma discussão bem viva e entusiasmante.
Para o segundo trimestre o mote foi “Nos 50 Anos do 25 de Abril”. Em consonância entrámos em abril com “Portugal, a Flor e a Foice” de J. Rentes de Carvalho. Um mergulho em alguns factos da nossa história, com a desconstrução de mitos e dados tidos como adquiridos e uma visão muito crítica sobre a revolução dos cravos, os seus antecedentes e consequências. Um olhar de fora para dentro, de alguém que vivendo a maior parte da sua vida nos Países Baixos, beneficiou necessariamente de uma aculturação muito própria. Estiveram presentes 18 leitores (3 que não leram o livro), numa sessão muito animada, a qual contou com poemas e uma instalação comemorativa da Liberdade.
Maio trouxe de novo Agustina Bessa-Luís e o seu “Os Meninos de Ouro”. A escritora raramente é consensual e numa avaliação mais radical, está um pouco na onda do “ou se ama ou se odeia”. Mas que a sua escrita é intemporal, ninguém duvida. Com este romance as opiniões voltaram a dividir-se e houve quem gostasse muito e quem se tivesse arrastado na leitura. A história desenrola-se em torno de José Matildes, menino de uma grande e tradicional família do Douro, homem político no pós-revolução e advogado de formação, que enquanto se dedica à sua atividade política, contradizendo a sua carga de homem extremamente rígido nos seus valores morais, acaba por abandonar a sua mulher Rosamaria, juntando-se a Marina, uma mulher sofisticada, em quem José projeta a sua ânsia de libertação dos seus fantasmas. José é facilmente identificado como o malogrado primeiro ministro de Portugal, Sá Carneiro. Estiveram presentes 18 elementos e 7 não leram ou não terminaram a leitura.
Junho, foi mês de feira do livro em Lisboa, com diversas atividades aliciantes para os leitores e também o términus do trimestre comemorativo da revolução, com “Os Memoráveis”, de Lídia Jorge. Um romance bem recebido por todos, que nos devolveu à memória acontecimentos que não devem ser esquecidos. Através do olhar de três jovens e a partir de uma fotografia de grupo, embarcamos numa viagem evocativa dos caminhos da revolução dos cravos, através de um conjunto de entrevistas às pessoas que nela constam, todos com um papel mais ou menos relevante nos acontecimentos daquela “bela madrugada que tantos esperavam”. Houve quem visse uma visão melancólica da revolução com alguma ambiguidade e ironia. Quem dissesse que trocava a melancolia pelo desencanto. Quem sentisse algum desalento, mas mesmo assim uma esperança. E todos tentaram identificar as personagens ficcionais com as personagens reais dos acontecimentos. Foi uma sessão bonita em que estiveram presente 21 elementos, dos quais 3 não leram o livro.
O 3º Trimestre veio sob o mote - Romance! Romance! Romance! – pelo que, em julho, chegou “Justine” de Lawrence Durrel. Sendo o primeiro dos quatro romances que formam “O Quarteto de Alexandria”, esta foi uma leitura que alguns consideraram de excessos até mesmo a roçar o barroco. Encontros e desencontros de um grupo de pessoas relacionadas entre si sob diferentes formas: amizade; amor; paixão e mesmo ódio, tendo como personagem central a excêntrica e algo decadente cidade de Alexandria. Justine, mulher exótica, linda, rica, misteriosa e judia, com um passado doloroso, é a personagem em torno de quem gravitam homens e mulheres eroticamente obcecados por ela que, por sua vez os usa para saciar os seus próprios demónios. Entre os que gostaram muito e os que nem por isso, apenas 2 dos 19 presentes não leram ou não acabaram.
Agosto é por sinónimo, mês de férias. Talvez por isso, surgiu uma leitura mais leve do que o habitual. “Praça do Rossio, Nº 59” de Jeannine Johnson Maia, trouxe-nos um tema muito sério e importante, mas apresentado de uma forma ligeira. Em 1940, numa cidade de Lisboa, então uma placa giratória para a saída daqueles que fugiam da Guerra, desenrola-se durante 9 dias, uma história romanceada entre os jovens António, português, empregado de mesa no café Chave d’Ouro e carteirista nas horas vagas e Claire uma refugiada franco-americana que chega à estação do Rossio, em trânsito para apanhar um barco para a América. As suas vidas cruzam-se numa intriga de espionagem e política numa Lisboa salazarista, supostamente neutra, mas…onde ninguém está seguro, sobretudo os que estão do lado certo da guerra. 20 leitores presentes, tendo todos lido o romance e considerado uma leitura agradável apesar da sua ligeireza.
Em setembro conhecemos a escrita de Javier Marías e o seu “Berta Isla”. Uma avalanche de reflexões, uma avalanche de parágrafos, uma avalanche de palavras. Uma imensa densidade de escrita, transporta-nos através da vida de Berta Isa e do seu muito ausente marido Tomas Nevinson. Um ambiente de espionagem, de suposições, de mil perguntas e poucas ou quase nenhumas respostas. Aprender a viver com a espera e construirmos o nosso eu através dela. Foi muito do agrado das 25 pessoas presentes, das quais, 4 não conseguiram ler ou acabar de ler o livro.
Entrámos no último trimestre do ano sob o mote “Outros Géneros”. Assim, Outubro trouxe-nos o conto de Karen Blixen “A Festa de Babette”. Parafraseando o nosso coordenador Manuel Nunes este é “…um conto de proveito e exemplo. Proveito por nos instruir sobre tantas coisas da vida, exemplo por nos indicar caminhos a seguir, e isto sem deixar de nos deleitar pelos lances curiosos e engraçados com que nos deparamos ao longo do texto…”. Uma escrita suave e encantadora, uma história que celebra a vida e que reconcilia. Um prazer imenso na leitura, foi a conclusão dos 22 leitores presentes, onde apenas 1 não teve oportunidade de ler.
Em novembro, um pequeno grupo da nossa Comunidade, esteve na Biblioteca Central de Almada, a propósito da programação relativa à comemoração do seu 27º Aniversário, que incluiu o 1º Encontro dos Grupos de Leitores da Rede de Bibliotecas Municipais da Área Metropolitana de Lisboa. A nossa leitora Maria José Correia (Joca), foi convidada a participar na mesa do encontro. O testemunho da sua participação que também funciona como registo histórico da vida desta Comunidade de Leitores até aos dias de hoje, foi objeto de uma publicação própria neste blogue.
Dezembro chegou de forma poética. O último livro do ano encerrou o mesmo de um jeito bonito e até mesmo encantador. “O Eremita Viajante” de Matsuo Bashô, encantou a Comunidade, com a beleza dos seus haikus, a poesia tradicional japonesa, que num formato curto de apenas 3 versos, capta o instante em que cada palavra assume uma força maior. Falou-se, por exemplo de escassez lexical, de minimalismo, da beleza do pormenor e da plenitude do instante, entre outros. Uma leitura feliz para a maior parte dos 20 leitores presentes, dos quais apenas 5 não leram ou não completaram a leitura.
E terminou assim mais um ano de leituras em comum, em que a partilha de ideias, de conhecimento e de opiniões nos entusiasmou ao longo das diferentes sessões, sempre muito concorridas. Novos leitores foram aparecendo, uns de forma pontual, outros acabando por se tornar “residentes”.
Agradecemos mais uma vez à
Biblioteca de São Domingos de Rana e aos seus responsáveis, pela cedência do
espaço e pela disponibilidade, essenciais para a continuidade desta Comunidade.
Bom Ano 2026
Reading Sibyl - Simone
Cantarini
1º Trimestre - NASCIDOS HÁ 100 ANOS
31 de janeiro - Dinossauro
Excelentíssimo, José Cardoso Pires,
28 de fevereiro - Um
Bom Homem é Difícil de Encontrar, Flannery ’Connor
28 de março - O
Templo Dourado, Yukio Mishima
2º Trimestre - ROMANCE, PARA QUE TE QUERO?
24 de abril – Não há
Morte nem Princípio, Mário Dionísio
30 de maio –
Baumgarter, Paul Auster
27 de junho – A Cidadela
Branca, Orhan Pamuk
3º Trimestre - ROMANCISTAS
PRÉMIO CAMÕES
25 de julho - Leite
Derramado, Chico Buarque
29 de agosto –
Compêndio para Desenterrar Nuvens, Mia Couto
26 de setembro –
Maina Mendes, Maria Velho da Costa
4º Trimestre – OUTROS
GÉNEROS
(teatro, ensaio, poesia, romance gráfico)
31 de outubro – Homem
de Palavra(s), Ruy Belo
28 de novembro –
Ferreira de Castro, Uma Biografia, Ricardo António Alves
19 de dezembro –
Antígona, Sófocles
(Falto eu na foto porque estava atrás da lente 😃)
No passado dia 23 de novembro, um pequeno grupo da nossa
Comunidade, esteve na Biblioteca Central de Almada, a propósito da programação
relativa à comemoração do seu 27º Aniversário. A nossa leitora Maria José
Correia (Joca), foi convidada a participar na mesa do 1º Encontro dos
Grupos de Leitores da Rede de Bibliotecas Municipais da Área Metropolitana de
Lisboa e deixa-nos aqui o testemunho da sua participação. Ao mesmo tempo o seu
texto funciona como registo histórico da vida desta Comunidade de Leitores,
até aos dias de hoje.
"O Davide Freitas, nosso amigo e colaborador da Biblioteca do Feijó, em Almada, convidou-me para representar a nossa Comunidade de Leitores, no 1º Encontro dos Grupos de Leitores da Rede de Bibliotecas Municipais da Área Metropolitana de Lisboa. E eu fui.
Este Encontro realizou-se no sábado, dia 23 de novembro,
pelas 16h, com entrada livre, no âmbito do 27º aniversário da Biblioteca
Central de Almada, com a presença da Direção-Geral dos Livros, dos Arquivos e das
Bibliotecas. Antes, realizaram-se as cerimónias de entrega de dois prémios
literários: Prémio Literário Cidade de Almada, Modalidade Romance, 36ª Edição
(atribuído a “A matéria das estrelas”, de Isabel Rio Novo), e Prémio Literário
Maria Rosa Colaço, Literatura juvenil, 19ª Edição (atribuído a “A colina”, de Rui
Cerqueira Coelho).
A sessão do Encontro teve a presença da DGLAB (Bruno
Eiras) e foi moderada por José Mário Silva, jornalista do Expresso.
Participaram na mesa, para além das citadas pessoas, representantes dos Grupos/Comunidades
de Leitores da Biblioteca de S. Domingos de Rana, Cascais; da Biblioteca de
Oeiras; da Bibliotecas das Galveias, Lisboa; e da Biblioteca José Saramago,
Feijó, Almada. Participou também o escritor e cronista do Público João da
Silva.
A minha intervenção desenvolveu-se em três ideias
principais: a história da formação da nossa Comunidade, as nossas principais
características diferenciadoras dos demais grupos de leitores e a nossa forma
de organização e funcionamento.
O histórico das origens da nossa Comunidade pode ser lido
integralmente ao longo dos registos do nosso blog COM OLHOS DE LER. A Biblioteca
de S.D. Rana foi inaugurada em 2005. Em 2006, e no âmbito da promoção da leitura,
do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, foram realizadas algumas
sessões de dinamização, conduzidas pela Profª. Paula Coelho, da Universidade
Aberta. A participação foi reunindo as pessoas que viriam a ser o cerne da
nossa Comunidade, cuja primeira reunião formal ocorreu em 26 de fevereiro de
2007, de onde surgiriam as ideias mestras de funcionamento e o plano de
leituras do ano. A minha primeira participação só viria a acontecer mais tarde,
na sessão de julho de 2009.
Ao longo destes 17 anos, a Comunidade reuniu regularmente
na última sexta-feira de cada mês, sempre à noite, 12 vezes por ano, o que dá
mais de 200 livros lidos e debatidos. A Comunidade de Leitores é uma
organização informal, independente, que utiliza as instalações da Biblioteca de
S.D. Rana. Tem um coordenador, o nosso amigo Manuel Nunes, e agrega pessoas de diversas
origens, formações, profissões (nenhum bibliotecário) e idades, cujo perfil é o
mesmo: gosto por livros e leitura como primeiro passo para uma conversa aberta
e coletiva. O número de presenças tem variado ao longo dos anos, tendo sido
assinalado um máximo de 32 pessoas presentes; atualmente as sessões reúnem
entre 20 a 25 pessoas; os leitores efetivos são habitualmente maioritários no
número de presenças; a larga maioria das presenças é constituída por mulheres.
O plano de leituras é definido nos últimos meses de cada
ano, a partir das sugestões dos participantes, com organização final do coordenador;
habitualmente, os livros são ordenados de forma temática em cada trimestre; o
plano final é divulgado na Agenda Cultural de Cascais, no nosso blog e no nosso
FB. Os livros e as leituras têm sido o pretexto e o móbil, para desenvolvermos
outras atividades de âmbito cultural, sendo de destacar: várias viagens (a
Toledo (D. Quixote, Cervantes), à Madeira (Eternidade, Ferreira de Castro), aos
Açores (Mau tempo no Canal, Vitorino Nemésio), a Portalegre (Davam grandes
passeios ao domingo, José Régio), a Amarante (Espingardas e música clássica,
Alexandre Pinheiro Torres), a Leiria (O crime do Padre Amaro, Eça de Queirós),
a Tormes e S. Miguel de Seide (Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco);
participação em outras Comunidades e Grupos de leitores; passeios e roteiros
temático; idas a cinema, teatro e exposições; apresentação de livros e Feira do
Livro de Lisboa. Na nossa Comunidade de Leitores, todos são bem vindos, todos
têm oportunidade de apresentar os seus pontos de vista, e há sempre espaço para
acrescentar uma cadeira na roda, forma como nos colocamos nas nossas sessões.
Foi-me colocada uma questão pessoal sobre a minha
experiência na Comunidade, que efeitos teve na minha forma de ler, se me
transformou de alguma maneira enquanto leitora. Com efeito, sempre li muito e
tenho o gosto de ler, sendo “filha” das Bibliotecas Itinerantes da Fundação
Calouste Gulbenkian. Com a participação na Comunidade de Leitores, senti
necessidade de ler com mais atenção, de reter passagens e opiniões sobre cada
livro, de pesquisar para melhor compreender e argumentar na análise e no debate
que envolve cada sessão. E como as conversas são como as cerejas…e as leituras
também, atrás de cada livro vêm conversas, histórias, ideias, outros livros,
filmes, teatros, viagens, exposições, passeios, caminhadas, jardins, parques, piqueniques,
ágapes, gastronomia…enfim, uma vida mais enriquecida, do ponto de vista pessoal
e cultural.
Que este 1º Encontro dos Grupos de Leitores seja a
primeira iniciativa no reconhecimento e na visibilidade destas entidades
culturais, enquanto agentes promotores do livro e da leitura. E já que os
preços de mercado não ajudam na aquisição de livros, que as ajude a atualização
dos catálogos e o alargamento de horários das bibliotecas, enquanto serviço
público de acesso e fruição livres."
“Pura memória é
uma narrativa biográfica mas também ficcional, que abrange um período de quatro
anos – 1952 a 1956 – vividos em Caparide, aldeia do concelho de Cascais, onde a
autora residiu até aos dezoito anos.
Emília Marçal Amor,
professora e autora de algumas publicações das quais se destacam Didática
do Português – Fundamentos e Metodologia e Littera - Escrita,
Reescrita, Avaliação. Um Projecto Integrado de Ensino e Aprendizagem do
Português - Para a Construção de uma Alternativa V, apresenta-nos nesta
narrativa uma genuína imersão de uma criança citadina num meio contrastante,
então acentuadamente rural.
São estas memórias, de um
período da história de Caparide e da freguesia de São Domingos de Rana, para as
quais praticamente não existe informação escrita que urge conhecer, preservar e
transmitir às gerações vindouras numa política de valorização, salvaguarda e
proteção do nosso património imaterial coletivo.”
Na sessão da passada sexta-feira, fomos brindados com um excelente ensaio do nosso Coordenador Manuel Nunes, sobre o conto "A Festa de Babette". Aqui fica para quem não pôde estar presente e também para uma releitura mais atenta dos que por lá estiveram...
"De acordo com um preceito que remonta a Horácio, poeta latino do século I a.C., o texto literário deve servir para instruir e deleitar. Ou seja, deve ser uma fonte de prazer para o leitor e cumprir, ao mesmo tempo, propósitos de natureza ético-pedagógica. Isto parece tão óbvio que quase escusava de ser dito a quem lê e partilha leituras numa comunidade de leitores. Temos então, repita-se, “instruir e deleitar”.
Gonçalo Fernandes Trancoso, autor português do século XVI, publicou em vida a sua obra Contos e Histórias de Proveito e Exemplo cujo título, como é evidente, remete para essa função eminentemente ética e pedagógica da escrita literária em geral e do género conto em particular.
O
conto A Festa de Babette, de Karen
Blixen, é isso mesmo, um conto de proveito e exemplo. Proveito por nos instruir
sobre tantas coisas da vida, exemplo por nos indicar caminhos a seguir,
e
isto sem deixar de nos deleitar pelos lances curiosos e engraçados com que nos
deparamos ao longo do texto.
Em A Festa de Babette temos uma história cujas principais personagens se dispõem como que em pentagrama: duas mulheres, dois homens e uma terceira mulher que é o eixo do enredo. Tanto as duas mulheres (as irmãs Martine e Philipa, filhas de um deão e profeta luterano da Noruega profunda) como os dois homens (o oficial hussardo Lorens Loeuwenhielm e o cantor Achille Papin da Ópera de Paris, apaixonados por cada uma das irmãs) se cruzam e entrelaçam com Babette Hersant, chefe de cozinha do Café Anglais de Paris e communarde activa nas barricadas de 1871, forçada depois ao exílio pelo fracasso da acção revolucionária.
Lembremos os dois apaixonados das irmãs. O primeiro não foi capaz de revelar o seu amor, seguindo como compensação uma ambiciosa e fulgurante carreira das armas; o segundo amou e revelou o seu amor mas, castigado pela rejeição, não logrou avançar na carreira artística: faltava-lhe a outra face de si, aquela que pelos dotes de cantora lírica completaria e daria sentido à sua arte.
Tomemos
as palavras do Salmo 85, citadas pelo deão e inscritas em várias passagens do
texto:
«A Misericórdia e a Verdade se reuniram; a Virtude e a Ventura trocaram um beijo».
Ultrapassando o sentido bíblico e cristão desta passagem do salmo, a Misericórdia deve ser entendida como o amor e a Verdade como a sua revelação. É desta forma que a Virtude e a Ventura se prestam a trocar um beijo.
Com estas palavras do salmo se abre o discurso do General Loewenhielm na festa de Babette, sabendo-se que esse discurso é o resgate do seu passado rumo a um futuro marcado pelos valores espirituais. Diz-se no conto que no fim da sua carreira, com o peito repleto de medalhas, o general se preocupava com a alma. Mas não lhe chamemos alma, demos-lhe outros nomes: verdade, equilíbrio, paz, solidariedade, amor – estes os rostos múltiplos da alma, os seus mais belos rostos.
E a graça, também referida pelo general como divina, o que é a graça? Alijada toda a carga religiosa e sobrenatural, a graça é aquilo que nos é revelado pela razão e pela inteligência emocional: a vontade de sermos justos, de não ofender ou maltratar os outros, de sermos humanos procurando os melhores caminhos para a felicidade. Era esta graça que o general quereria albergar em si. Por isso o seu discurso foi a melhor iguaria da festa de Babette, melhor que o amontillado, os blinis Demidoff, as cailles en sarcophage ou as uvas só comparáveis em excelência àquelas que os filhos de Israel encontraram no vale do Escol.
O melhor da festa foi também o desapego material de Babette, gastando os seus dez mil francos num jantar que foi um hino à vida e ao valor da amizade e da memória. Um jantar que reconciliou todos com todos e cada um consigo mesmo, ainda que no final não se lembrassem os membros da congregação dos pratos que haviam desfilado pela mesa. É o sensível dos sabores a ser ultrapassado pelos sentimentos do amor e da reconciliação.
Sim,
porque é de reconciliação que se trata. Reconciliação de Babette com a sua arte,
pois o título da última parte do conto é justamente “A grande artista”.
Reconciliação com os nomes grados de nobres e burgueses que apreciaram a sua
cozinha nos jantares do Café Anglais, esses inimigos de classe que combateu até
ser derrotada nas barricadas de Paris. De acordo com o testemunho do General
Loewenhielm, o Coronel Gallifer, frequentador habitual do Café Anglais, exaltava
o génio culinário da chefe de cozinha, o romance de amor que escrevia em cada
jantar em que punha a mão.
Há um sentido alegórico em tudo isto: a arte é vida e pode a vida passar pelos transes mais difíceis sem que esmoreça o seu valor. A arte de Babette valia mais que os dez mil francos e ela provou-o. Porque a arte só é dinheiro para os artistas fingidos e enganadores, os que vendem e se vendem (as duas acções em simultâneo) sem atenderem ao espírito da criação do belo.
O hino dos irmãos da congregação continha dois versos nos quais se ouvem as palavras do Evangelho de Mateus, capítulo 7, versículos 9 e 10: «Irás dar uma pedra ou um réptil / ao teu filho que implora o alimento?»
Assim como diz o evangelista, também o artista deve dar o pão em vez da pedra, e o peixe em vez da cobra aos que buscam como alimento a sua arte.
Por tudo isto, A Festa de Babette lê-se com a enorme alegria de quem está na presença de um texto singularmente belo.
E para finalizar, uma pequena nota exclamativa: como este conto de apenas quatro dezenas de páginas é capaz de nos interpelar como não nos interpelam alguns grossos volumes de centenas!"
MJMN, São Domingos de Rana, 25-10-2024
“Babette havia chegado só
pele e osso, com o olhar de um animal acossado, mas neste novo ambiente de
amizade em breve ganhou toda a aparência de uma criada respeitável e de
confiança. Havia parecido uma pobre de pedir; revelou-se uma conquistadora. O
seu rosto sereno, o seu olhar calmo e profundo, tinham propriedades magnéticas;
sob aquele olhar as coisas moviam-se sem ruído e reocupavam os seus devidos
lugares.
A princípio, as amas de Babette quase estremeceram, tal como acontecera em tempos ao Deão, à ideia de receberem em sua casas uma papista. Mas não estava naqueles temperamentos torturar com catequeses criatura tão sofrida; e, vamos lá, também não estavam muito seguras dos seus conhecimentos da língua francesa. Concordaram tacitamente que o exemplo de uma vida de boas luteranas seria o melhor meio de converter a criada. Deste modo, a presença de Babette nessa casa tornou-se, por assim dizer, um aguilhão moral para as suas moradoras…”
In capítulo V de “A Festa de
Babette” de Karen Bixen
Abri ao acaso e li:
“E assim se passou mais um
ano e dois, três e quatro e cinco e seis. Desde que Tomás pôde contar-me
parcialmente aquilo que na verdade fazia, passei a achá-lo mais despreocupado,
mais descontraído, de melhor humor quando estava em Madrid; as mágoas e as
insónias dele deixaram de ser constantes para se tornarem apenas temporárias,
apareciam ou agravavam-se precisamente antes de ir para Londres e também as
trazia consigo ao regressar, como se precisasse de tempo para se safar da sua
outra vida, das suas outras vidas passageiras, mas provavelmente vividas com
mais intensidade…”
In “Berta Isla” de Javier Marías
Sinopse
Lisboa,
abril de 1941. Em apenas nove dias, as vidas de uma mulher e de um homem
mudarão para sempre. Vinda de Marselha, Claire, uma franco-americana
de 17 anos, desembarca do comboio na estação do Rossio. À chegada, o seu
caminho cruza-se - de maneira pouco agradável - com o de um jovem empregado do
café Chave d’Ouro. Desenhador (e carteirista) nos tempos livres,
António testemunha em primeira mão e tira partido dos conluios entre os espiões
que se passeiam livremente pela capital portuguesa.
Enquanto aguarda pela família, na esperança de poderem partir juntos para os
Estados Unidos, Claire vai à procura de duas crianças separadas dos pais à
força e abandonadas à sua sorte, que transportam, sem saber, um segredo
perigoso. António, chocado com o assassinato de um amigo, refugiado alemão
raptado pela PVDE, tenta descobrir o responsável pelo crime. As investigações
de ambos - e as suas vidas - vão cruzar-se, sem apelo nem agravo, à medida que
descobrem que os desaparecimentos estão relacionados com um objeto que
os nazis procuram em Lisboa.
Numa
cidade repleta de espiões, intrigas e traição, a posse de tal objeto pode
representar uma sentença de morte. Mas pode ser bem mais angustiante ter de
decidir entre o amor e o dever.
In “Praça
do Rossio, Nº 59” de Jeannine Johnson Maia
“O
mar está novamente agitado hoje, com rajadas de vento que despertam os sentidos.
Em pleno inverno, a primavera começa a fazer-se sentir. Toda a manhã o céu
esteve de uma pureza de pérola; há grilos nos recantos sombrios; o vento
despoja e fustiga os grandes plátanos…
Retirei-me para esta ilha com alguns livros e com a criança – a filha de Melissa. Não sei porquê, agora ao escrever, penso nesta ilha como num «retiro». Os habitantes dizem por brincadeira que só um convalescente pensaria em vir procurar este lugar. Bem, para condescender, admitamos que sou um homem que procura curar-se…”
In “Justine”
de Lawrence Durrell
Quando vais à Feira do Livro e dás de caras com uma companheira de leituras numa conversa sobre o que é "ser Poeta em Portugal", ficas a assistir e registas o momento. Aconteceu ontem. A Marta Meireles estava lá e foi apanhada em flagrante delito, por outras duas das nossas leitoras 😊
"...Esta é uma página prescindível. Ela relata um dia prescindível, uma acção prescindível. Eu não deveria ter voltado à Praia Grande e voltei. Voltei sozinha. Além do mais, voltei, conduzindo o carro argenté do meu pai..."
A abrir o capítulo XIII de "Os Memoráveis" da Lídia Jorge
O 2º Trimestre chega com a
comemoração dos 50 Anos do 25 de Abril. Os autores foram escolhidos no âmbito
desta comemoração. Assim, em Abril estaremos com “Portugal, a Flor e a Foice”
de J. Rentes de Carvalho.
Ontem tivemos mais uma atividade fora de portas: manhã de poesia no Cemitério dos Prazeres, onde homenageámos alguns dos poetas, ali eternamente residentes: Mário Cesariny, Jorge de Sena, Cesário Verde, Al Berto, António Ramos Rosa e Alcipe, Marquesa de Alorna. Com um programa bem delineado e coordenado pelo Manuel Nunes e pela Paula Silva, a quem todos agradecemos, para além de ficarmos a saber um pouco mais da vida daqueles poetas, foram ditos vários dos seus poemas pelos nossos inspirados leitores. Uma bonita manhã de quase Primavera que terminou com mais um salutar almoço convívio.
Poema
Em todas as ruas te encontro
A abrir
“Estava ali havia um bom pedaço
vindo da esquina até defronte do prédio onde ela servia, enervado de esperar
tantos minutos, pois já lhe assobiara o sinal combinado e ela ainda não
aparecera, nem sequer à janela, aquietando-lhe a dúvida que começava a
preocupá-lo.
Naturalmente dera-lhe trela
naquele Santo António por desfastio ou porque a noite convidava à conversa.
Abalara até ao Rossio, embora cansado do trabalho do armazém, mas mais cansado
ainda dos maus modos dos primeiros-caixeiros, piores no trato do que os patrões,
convencidos de que assim chegariam mais depressa a sócios da casa.
Encaminhara-se para ali fugindo à solidão do quarto, que lhe aumentava as dores
de cabeça que trazia do emprego. Tinham fechado mais cedo, porque os santos
eram dias alumiados e, talvez também pelo hábito de sair só depois da uma hora
batida, se sentira atraído pelo ruído da rua. Não procurara com quem
acamaradar; escusara até, com um pretexto qualquer, a companhia de outro
hóspede da casa, entristecido pelas saudades da sua aldeia de mistura com
queixumes da vida. Mudara de fato e saíra, metendo no bolso umas moedas para
beber o seu copo e arranjar, se calhasse, uma moça para passar o tempo, pois,
em noite de bailaricos e fogueiras, as mulheres acessíveis são ainda mais
fáceis…”
In “Os Reinegros” de Alves Redol
Alguns leitores da
Comunidade estiveram na passada sexta-feira, dia 2, no Supremo Tribunal de Justiça.
Cumpria-se a apresentação do romance de Carlos Querido a cargo do Juiz
Conselheiro Henrique Araújo, presidente daquele Tribunal.
A intervenção de
Carlos Querido integrou uma alusão à Comunidade e à nossa participação em
anteriores sessões sobre obras suas, nomeadamente as que tiveram lugar na Feira
do Livro em torno do romance histórico “A
Redenção das Águas” e da colectânea de contos “Habeas Corpus”.
De “Alegações Finais”, destacamos a lição de vida que o enredo contempla, a história de um advogado, filho de famílias humildes, que não obstante o triunfo profissional não logrou alcançar uma vida feliz face a desvios de carácter que lhe arruinaram o casamento. O romance desenvolve-se segundo um registo de escrita em que a voz do narrador se confunde com as das personagens e as suas correntes de consciência. Julgamos surpreender muitas das preferências artísticas, literárias e musicais do autor frequentemente trazidas ao curso da história. Claro que a actividade profissional de Carlos Querido (juiz desembargador) sente-se presente em todo um conjunto de termos e procedimentos jurídicos que, tratando-se o protagonista de um advogado, dão consistência ao discurso narrativo. Terão tido sucesso as alegações finais da infeliz personagem na sua tentativa de reganhar a harmonia conjugal? O romance não o diz, terminando de uma forma que permite considerá-lo como uma “obra aberta”.
O DRAMA EM GENTE
Fingiram todos,
todos me fingiram
e em tradição me deram
fingimento
É certo que eram outros
tempos outros,
em que ser muitos
era coisa ausente
Mas todos me fingiram
e ensinaram
que o comboio de corda
pode ser
de corda a sério,
não de coração
Também eu tive,
embora em outra esfera,
outras noites de verão
Nada lhes devo
e em tudo, embora,
devedor lhes sou
Que os séculos agora
lhes dêem o sossego
ou dêem nada –
Ou nem que seja
a dor do universo,
como a dor de cabeça
infinita, silente,
de que padeço para sempre
e desde
que eles vieram
visitar-me os sonhos
- ANA LUÍSA AMARAL, Escuro, 2014
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
- FERNANDO PESSOA, Presença, nº 36, Novembro de 1932