15 abril 2014

A VISITA ÀS IGREJAS

Saibam os meus caros confrades que prossigo a investigação das fontes de Saramago para a escrita de Memorial do Convento. Eu sei que estas ou outras coisas parecidas estão em exposição na Casa dos Bicos, lugar a cuja porta passo frequentemente, e, talvez por isso, nunca tenha lá entrado para ver a dita exposição. Portanto, estou por conta própria.
O meu problema é que ainda não passei do admirável relato do médico e naturalista suíço Charles Fréderic de Merveilleux, Memórias Instrutivas sobre Portugal (1723-1726).
Merveilleux esteve várias vezes entre nós, a convite do rei Magnânimo. Este encomendara-lhe uma história natural de Portugal, o que o fez viajar pelo país profundo, tendo chegado a ir à serra da Estrela.
As suas impressões de Lisboa são do máximo interesse. Já que estamos na semana da Páscoa, vejam-se estas:
“A visita às igrejas durante a semana santa faz, num só dia, mais cornudos do que na vida habitual durante todo o ano. As mulheres têm a liberdade de andar pelas ruas durante toda a noite, apenas embuçadas nos seus mantos negros; os galãs disfarçam-se com trajos de mulher e misturam-se na multidão. Os maridos tomam a precaução de fazer acompanhar suas mulheres por escravas que eles julgam fiéis à honra dos seus senhores. Essa fidelidade, porém, não está à prova dos presentes que recebem dos galãs, acabando por serem essas mesmas escravas que conduzem as beldades a casa dos seus amantes.”
Queiram comparar com a prosa do nosso Nobel, terceiro capítulo, salvo erro:
“(…) talvez que o costume de deixar que as mulheres corram as igrejas sozinhas na quaresma, contra o uso do resto do ano, que é tê-las em casa presas, salvo se são populares com porta para a rua ou nesta vivendo (…), talvez que o dito costume mostre, afinal, quanto é insuportável a quaresma, que todo o tempo quaresmal é tempo de morte antecipada, aviso que devemos aproveitar, e então, cuidando os homens, ou fingindo cuidar, que as mulheres não fazem mais que as devoções a que disseram ir, é a mulher livre uma vez no ano, e se não vai sozinha por não o consentir a decência pública, quem a acompanha leva iguais desejos e igual necessidade de satisfazê-los, por isso a mulher, entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem, qual seja, e a criada que a guarda troca uma cumplicidade por outra, e ambas, quando se reencontram diante do próximo altar, sabem que a quaresma não existe e o mundo está felizmente louco desde que nasceu.”

1 comentário:

Custódia C. disse...

Não se podem deixar as mulheres em liberdade ... está provado ....