26 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (10)

O poema “Liberdade”, de Fernando Pessoa, datado de 16-3-35 (a 8 meses e meio da sua morte), teve a 1ª publicação no nº 526, de 11-9-37, da Seara Nova, nessa página cuja imagem aí se reproduz.

Coisas estranhas que nele se dizem ("Ler é maçada", "Livros são papéis pintados com tinta"), em especial por virem de um homem que se fartou de ler (e escrever), renunciando aos prazeres da vida vivida e a compromissos do coração. Uma existência excessiva de engenho e arte em que não houve lugar para outras coisas.

Talvez passe por aqui a interpretação (biografista e psicológica, desculpem lá) do poema, se é que é passível de interpretação. Ainda que na dúvida, achamos que D. Sebastião e Jesus Cristo estão ali só para atrapalhar o leitor ingénuo. Do que ele queria falar era das flores, do sol e da música, elementos que se encontram com facilidade (ou talvez não) na composição do amor.

O homem de carne e sentidos que nele havia já tinha dado sinais da insatisfação. Veja-se o poema “Dá a surpresa de ser”, feito sob injunção erótica da jovem namorada do mago ocultista Aleister Crowley que o visitara em 1930:

 

Dá a surpresa de ser.

É alta, de um louro escuro,

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalmado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

 

(Arquivo Pessoa, Obra Édita, datado de 10-9-30)

 

E agora, cumpridas estas 10 publicações, vou embarcar para outras paragens. Legentes, por favor, não deixeis de fazer as vossas leituras, salvaguardando, claro, o mais que a vida dá.

24 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (9)

                              

Confesso com humilde sinceridade ter aprendido imenso com as leituras feitas em comunidades de leitores. Acho que partilho com muitos este sentimento pessoal e transmissível: ler, por sugestão de outros, obras às quais não chegaria com facilidade.

Nem todos pensarão da mesma maneira e ainda bem. Há os que têm a sua própria orientação literária (diria mesmo a sua agenda), sejam ou não como o autodidacta de Sarte no romance A Náusea. Admiro esses espíritos fortes e independentes, admiro a sua superioridade de leitores.

Assim, venho para o computador-máquina-de-escrever martelar estas palavras – que não são interditas, como as do poema de Eugénio de Andrade – sob os efeitos do livro que se apresenta aí no ápice da publicação e que vou lendo esta semana por sugestão de bons confrades ledores. Não fossem eles e convenço-me de que só o leria na eternidade, local, se assim lhe posso chamar, onde se consegue ler tudo sem preocupações de tempo ou distância. É lá, certamente, que ainda conseguirei ler Ulisses, de James Joyce, e A Cidade de Deus, do Bispo de Hipona, livros começados mas nunca acabados.

Até esses instantes supremos (instantes em sentido figurado, claro) é procurar ser feliz tanto quando for possível. Tenho-me sentido feliz, lendo os contos de Flannery O’ Connor.  

21 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (8)

Para certas pessoas, a leitura é uma simples fonte de prazer, enquanto para outras é também formação, autodidactismo. Já os antigos diziam que o fim da leitura seria o de deleitar e instruir. Ora aí está, isso mesmo.

Assim começa esta oitava publicação da “Educação Sentimental dos Legentes”, mas descansai, leitores, que a coisa não passará do número dez. Será um decálogo sem moral nem ética, dez mandamentos de quem não sabe mandar e, graças a Deus, é pouco mais do que um pau mandado.

Hoje falar-se-á de autodidactas em bibliotecas. Conhecemos alguns: o jovem Saramago da Biblioteca Galveias, lendo Ricardo Reis convencido de que era um poeta de carne e osso; ou o Ferreira de Castro, regressado da selva, estudando com afinco na biblioteca pública de Belém do Pará. Cada caso é um caso.

Curioso é o daquele autodidacta da biblioteca pública de Bouville (cidade imaginária) de que nos fala Sartre em A Náusea. Já não me lembro se o homem tinha nome, tão-pouco o que fazia para além de ler. Antoine Roquentin (o historiador protagonista do romance) conheceu-o quando na biblioteca fazia as suas investigações sobre uma qualquer personalidade de séculos passados.

Foi falando com ele e apercebeu-se dos propósitos que o animavam. Fazer a sua formação, que já se iniciara há sete anos, lendo todos os livros da biblioteca. O método era seguir as leituras por ordem alfabética dos nomes dos autores. Começara na letra A e, imagine-se, já ia na L, estudando os mais variados assuntos, da História e da Filosofia à Zoologia e à Física Quântica.

Poderia ter seguido de Z para A que dava o mesmo efeito, mas isso não interessa e aqui fica o caso para vossa meditação.

Avisai-me, ó leitores, se souberdes de algum autodidacta na nossa biblioteca. Teria grande prazer em o conhecer, até de o convidar para se agregar à nossa Comunidade.  


18 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (7)

 O ensaio “O Leitor Incomum”, de George Steiner, encontra-se publicado em Paixão Intacta, edição da Relógio d´Água de 2003, mas o texto pode ser encontrado na Net se for feita a competente pesquisa pelo legente interessado.

Foi redigido tendo como referência a pintura Le Philosophe lisant (1734), de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779) e é um discurso sobre a importância e a nobreza do acto de leitura.

Tudo o que a pintura nos mostra dá conta disso: o homem que lê vestido tal como se vai para uma cerimónia; o silêncio que se imagina em torno dele, como se estivesse retirado do mundo, entregue ao prazer supremo da leitura; a ampulheta e a pena sobre a mesa com significativas conotações de ordem prática e simbólica.

A ampulheta, medidora do tempo que é escasso para a leitura mas longo para a existência do livro e das suas personagens. Diz-nos Steiner que  «a vida do leitor mede-se em horas e a do livro em milénios». E também que Flaubert teria falado na hora da morte sobre o paradoxo de estar ele a morrer enquanto a “prostituta” Emma Bovary, criatura sua surgida em simples folhas de papel, continuaria a viver.

Depois a pena, hoje a caneta ou o lápis com que o leitor toma as notas da sua leitura. Toda a boa leitura supõe sublinhados, notas à margem, apontamentos em folhas de papel. «Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido, é embarcar em uma troca total», diz o autor do ensaio.

Mas afinal, caros legentes, todos vós procedeis mais ou menos com estes princípios. Claro que há as adaptações aos tempos modernos. Não vos imagino a vestir os melhores fatos quando vos pondes diante dos contos de Flannery O´Connor ou dos romances de Mishima.

E, por favor, nada de riscar ou anotar as páginas dos livros que haveis requisitado na biblioteca. Nem a lápis, que as borrachas são cada vez de pior qualidade e torna-se muito difícil de apagar.

17 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (6)

 “O Leitor” é um conto de Teolinda Gersão coligido em Histórias de Ver e Andar. Li-o há uns dez anos e tem uma história que passo a resumir.

É a história de um fã – como se diz hoje em linguagem informal – de romances policiais. Não lia, devorava os romances, desejoso de chegar ao fim e conhecer o verdadeiro assassino da pobre vítima entre as hipóteses avançadas ao longo do livro.

Tendo como profissão a de maquinista do metropolitano e sendo tão grande a sua paixão pela leitura, começou a levar os livros para o comboio, lendo-os sobre o tablier enquanto efectuava as manobras de condução.

Claro que a coisa deu mau resultado: não houve propriamente um acidente grave, mas falhas na informação que pelos altifalantes deveria ser prestada aos passageiros sobre a passagem pelas diversas estações da linha. Um passageiro percebeu a razão da sua distração, fez queixa, e o bom do leitor-maquinista foi despedido.  

Vem então o mais curioso: absorvido pela necessidade de procurar emprego, passou apenas a ler anúncios de jornal, não sendo capaz de voltar aos seus amados romances.

Moral da história: para ler, temos de ter serenidade, temos de nos sentir bem connosco e com os que nos rodeiam. A leitura não é uma terapia (para ajuda procurem os psicólogos ou os bruxos), antes um exercício de pessoas saudáveis que estão bem com a vida.

Pode haver quem pense o contrário. Há até mediadores de grupos de leitura que ufanamente se autoproclamam biblioterapeutas. Palavra estranha, não é? Mas eles lá saberão porque o dizem.  

15 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (5)

                                       

«Talvez não haja outros dias da nossa infância que tenhamos vivido tão intensamente como esses que cremos ter deixado sem os viver, esses que passámos com um livro preferido».

Esta é a abertura do texto Sobre a Leitura, de Marcel Proust. O autor das memórias de Combray com os passeios pelos lados de Méséglise e Guermantes (Em Busca do Tempo Perdido), expressa-nos neste livrinho de 70 páginas aquilo que a leitura pode dar – de prazer e de renúncia a outros prazeres – a quem, permanecendo neste mundo, quer descobrir os mundos possíveis que se desdobram triunfantes – umas vezes belos, outras aterradores – perante os prodígios da imaginação.

O jovem leitor que associamos a Marcel Proust aproveitava todos os momentos que lhe eram permitidos para se isolar e se entregar à leitura, sendo por vezes admoestado por se fechar no seu quarto, evitando os passeios e os convívios familiares.

A leitura é normalmente um acto de isolamento, de solidão. Por isso admiro os que conseguem ler nos transportes públicos – frequentemente lotados e ruidosos –, demonstrando uma capacidade acrescida de permanecerem sozinhos no meio de tantos. Estes serão talvez uns superleitores adaptados à velocidade e escassez de tempo dos nossos dias. Honra lhes seja feita, bem os conheço!

13 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (4)

Ignorante que sou de tantas e tão belas coisas, há semanas que venho fazendo a minha educação sentimental de legente na cátedra camoniana de Jorge de Sena. Educação sentimental, não sei se já se percebeu, porque a leitura é um sentimento. E Jorge de Sena, engenheiro civil da Junta Autónoma das Estradas até se tornar no scholar de Assis, Araraquara, Madison e Sta. Barbara (uma vida de professor pelo mundo em pedaços repartida) é também, além disto tudo, poeta, contista e romancista, além de espírito de trato difícil, agora só tangível em mediúnicos exercícios que não sei se há quem os faça nem quero saber. Bem, estive no ano passado à beira do seu túmulo no Cemitério dos Prazeres, só isso, e agradeço à companhia sentimental que me lá levou.

A imagem que acima se apresenta é, como se vê, do Salmo 136 (137 segundo o número hebraico), súplicas do povo exilado em Babilónia que Camões glosou nas redondilhas de Babel e Sião, “Sôbolos rios que vão” ou Super Flumina Babylonis (a que Jorge de Sena se referiu num conto de Novas Andanças do Demónio):

Sôbolos rios que vão / por Babilónia m´achei, / onde sentado chorei / as lembranças de Sião / e quanto nela passei. / Ali o rio corrente / de meus olhos foi manado, / e tudo bem comparado, / Babilónia ao mal presente, Sião ao tempo passado. (…)

Um poetastro da nossa praça atreveu-se a brincar com o assunto em poema dum seu livreco. Perdoai-lhe, senhores, porque ele, se calhar, não sabia o que fazia.

E assim vamos andando. Muito tardia mas proveitosa (para mim) esta sessão de educação sentimental.

12 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (3)

Há uns anos, após a leitura de um livro de contos de um amigo (edição da Chiado ou outra qualquer editora do género), exprimi a opinião de que a prosa era boa mas não estava posta em estilo actual, fazendo lembrar os textos de Camilo ou Júlio Dinis. Respondeu-me que sim, podia ser verdade, mas o que queria eu que ele fizesse se havia sido com Camilo e outros do seu século que aprendera?

Milan Kundera tem um conjunto de ensaios (“Consciência da continuidade”, desse livrinho aí na imagem) em que é tratado o assunto do inactual em arte. Imaginemos, diz o escritor, que era possível um virtuoso dos nossos dias compor uma sonata tão perfeita como uma qualquer de Beethoven, de tal forma que melómanos apurados, ao ouvi-la, arriscariam tratar-se de obra do grande compositor alemão. Ao saberem, porém, que não era, que fora um extraordinário virtuoso contemporâneo a criá-la, não deixariam de rir pela inactualidade do trabalho, reconhecendo-o não como obra de valor original, mas como um simples pastiche.

Isto diz respeito também à poesia. Tenho falado com leitores que não gostam da poesia moderna (alguns até não gostam de nenhuma poesia) e sentem que os versos rimados de Augusto Gil ou João de Deus, quando não os de Guerra Junqueiro, é que lhes enchem a alma.

Não está em causa a poesia dos clássicos, isto é, daqueles poetas que  por valor lograram romper o esquecimento que o tempo sempre tece. Eles serão sempre os maiores! Ocorrem-me os nomes de Camões, Sá de Miranda, Bocage, Quental…  Poetas com quem a poesia contemporânea dialoga com plena consciência do fenómeno da continuidade em arte. É o caso deste poema (“Minha senhora de mim”) de Maria Teresa Horta. Ecoa nele um conhecido verso de Sá de Miranda e aqui fica, também, em memória da autora:

Comigo me desavim / minha senhora / de mim // sem ser dor ou ser cansaço / nem o corpo que disfarço // Comigo me desavim / minha senhora / de mim // nunca dizendo comigo / o amigo nos meus braços // Comigo me desavim / minha senhora / de mim // recusando o que é desfeito / no interior do meu peito.

11 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (2)

Levaram-me no mês passado ao espaço Brotéria, no Bairro Alto, para assistir a uma conferência em torno de um ensaio de Flannery O`Connor – esse cuja foto da primeira página está aí no topo.

A questão do ensino da literatura não é assunto desinteressante para os leitores do género romance, o mais presente nos programas dos grupos de leitura, chamem-se eles clubes ou comunidades.

Flannery O´Connor diz-nos que o foco da leitura de um texto de ficção  deve ser posto na obra, naquilo que nela está, fugindo-se às tentações não literárias de interpretação como a biografia ou a psicologia do autor.

Na escola aprende-se com o professor, nos grupos de leitura, se a mediação for eficaz, todos aprendem com todos.

Lembremo-nos do que Camões diz em Os Lusíadas: quem não sabe de arte não a estima. Ora a ficção narrativa é a arte que, diferentemente de outras artes, nos fala dos sentimentos, da vida e do que esperamos dela. Aquela arte em que nós mesmos estamos metidos e que é forçoso compreender para a estimar.

Façamos, pois, a nossa educação sentimental de leitores que só teremos a ganhar com isso.

09 fevereiro 2025

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS LEGENTES (1)

O título O Romancista Ingénuo e o Sentimental corresponde a um conjunto de conferências proferidas por Orhan Pamuk em 2009 na Universidade de Harvard. Li-as há mais de dez anos, pouco depois da sua publicação em Portugal.

Falando de romancistas, são também os leitores que estão sob o foco analítico do escritor turco.

Temos assim o leitor ingénuo e o sentimental, sendo que este é o leitor reflexivo, o que sente a leitura para lá do mero entretenimento ou da devassa de vidas excepcionais proporcionadas pela arte do romance.

Enquanto o leitor ingénuo, desejoso de conhecer o desfecho dos enredos, abomina muitas vezes as descrições demoradas e atribui menor importância à profundidade psicológica das personagens, o leitor sentimental-reflexivo procura aquilo a que Pamuk chama o centro do romance, ou seja, a coerência interna da obra, por vezes dissimulada no subtexto ou na propensão alegórica da voz narrativa.

Uns e outros (leitores ingénuos e sentimental-reflexivos) partilham da enorme alegria de ler romances. Ambos se aceitam como sinceros e estimáveis, o que não significa que não tentemos fazer alguma coisa para os tornar melhores.  

01 fevereiro 2025

“Um Bom Homem é Difícil de Encontrar” de Flannery O’Connor –28 de fevereiro às 20h00

 


Do sul dos Estados Unidos chegam-nos estes contos de uma profunda narrativa, de uma tensão permanente, onde a incógnita do que vai acontecer é uma constante. Há uma oscilação dramática entre o humor, o caricato e a violência. Flannery O’Connor tem o dom de nos prender desde a primeira palavra até à última linha…