Há um mês atrás, em peregrinação à Cidade de tantos Nomes, como
V.Hugo, Proust e também R.Barthes, já agora, no meio das emoções de
revisitação deparou-se-me o choque: onde está Les Halles, o Forum? Um estaleiro gigante substituía à superfície a
imagem esperada, aquela que perseguia, ainda por cima, a consciência
arquitetónica internacional, pois o "buraco" que veio substituir os
pavilhões do século XIX não correspondia a nada de realmente importante do
ponto de vista da arte e da intervenção urbana. De tal forma que, na sequência
eventual deste erro, o local se tinha degradado enormemente. Seria caso para
procurar uma solução... Agora este gesto de "bota abaixo e sai uma coisa completamente diferente", só mesmo
numa cidade como Paris! Quis então trazer a este forum virtual algumas imagens, para vosso deleite e
informação, como primeiro capítulo de outras pequenas surpresas e pormenores
que entretanto me aprouver partilhar.
Blogue da Comunidade de Leitores da Biblioteca de S. Domingos de Rana - Cascais - Portugal
12 março 2014
11 março 2014
LEITURA E DESEJO
“Sobre a leitura” é um escrito de
Roland Barthes para a Writing Conference de
Luchon, de 1975. Está publicado em O
Rumor da Língua, Edições 70, pp. 31-35.
Na terceira parte deste texto, o
crítico francês aborda as relações entre leitura e desejo, dizendo: “(…) não
há dúvida de que existe um erotismo da leitura (na leitura, o desejo está ali
com o seu objecto, o que é a definição do erotismo).”
Dois traços são apresentados em
defesa da tese: a identificação do sujeito humano que lê (o lente) com o
sujeito amoroso e o sujeito místico; e a presença na leitura-desejo de todas as
emoções do corpo, desde a dor à volúpia.
Teresa de Ávila fazia da leitura o
substituto da oração mental; o lente isola-se e fecha-se (como o jovem narrador
da Recherche que se fechava na casa
de banho, segundo um conhecido episódio daquela obra, para se entregar ao “prazer
solitário” de ler) numa relação dual com o objecto da leitura que não é
distinta do recolhimento da oração (orador-Deus) ou da fruição do prazer
amoroso (amante-amado).
A relação da leitura com a analidade,
deduzida da referida passagem da Recherche,
é finalmente sustentada por Barthes. E isto é matéria que certamente
provocará ou indignará os nossos leitores em função das suas respectivas sensibilidades
(uns mais sensíveis que outros, atrevo-me a admitir) – se é que vão ler este escrito, do que sou obrigado a duvidar
não só pelas escassas visitas ao blogue, como pela poalha de silêncio solene
e frio que grassa no espaço virtual dos comentários.
10 março 2014
CLUBE DE LEITURA DO INSTITUTO CERVANTES DE LISBOA
Quarta-feira, 26 de Março, 18:30, com o livro Três Tristes Tigres do escritor cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005).
09 março 2014
CÂNTICOS
Teresa Salgueiro
Logo à tarde - 16 horas - na Igreja de São Domingos (Lisboa).
http://www.agencia.ecclesia. pt/dlds/bo/Teresa%20Salgueiro. pdf
http://www.agencia.ecclesia.
08 março 2014
HOJE, 100 ANOS DO DIA TRIUNFAL DE FERNANDO PESSOA - O NASCIMENTO DOS HETERÓNIMOS
"Anno e meio,
ou dois annos, depois lembrei-me um dia de fazer um partida ao Sá-Carneiro – de
inventar um poeta bucolico, de especie complicada, e apresentar-lh’o, já me não
lembro como, em qualquer especie de realidade. Levei uns dias a elaborar o
poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de
Março de 1914 – acerquei-me de uma commoda alta, e, tomando um papel, comecei a
escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos
poemas a fio, numa especie de extase cuja natureza não conseguirei definir. Foi
o dia triumphal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um
título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguem em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da phrase: apparecera
em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive."
Da carta de
Fernando Pessoa para Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935, publicada
pela primeira vez no nº 49, de Julho de 1937, da revista presença.
06 março 2014
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, 6 de Março de 1927, 87 ANOS
O GRITO DE DIGNA PARDO ANTE A QUEDA MORTAL
DE SEU AMO JUVENAL URBINO*
Foi às quatro horas e sete minutos da
tarde de Domingo
de Pentecostes, desciam sobre as casas as línguas flamejantes
do divino Paracleto. O calor anunciava chuva, o mar rumorejava
dentro de todos os búzios. Insolente, o papagaio fugira
para os ramos altos da mangueira, e uma escada romba de Pentecostes, desciam sobre as casas as línguas flamejantes
do divino Paracleto. O calor anunciava chuva, o mar rumorejava
dentro de todos os búzios. Insolente, o papagaio fugira
preparava-se para escrever uma página da história da infelicidade.
Nem sequer teve tempo de encomendar a alma: o corpo
desprendeu-se da escada como um fruto podre
caído ao solo em súbita demolição de músculos e ossos,
e nenhum anjo-da-guarda saiu dos catecismos para lhe aparar
a queda. O grito da criada Digna Pardo trespassou de pânico
as cúpulas de ouro da cidade velha, os pássaros calaram-se,
enquanto Deus, indiferente ao destino dos homens,
sorria de tédio e ócio à sombra roxa da sua eternidade.
* Digna Pardo e Juvenal Urbino
são personagens de Gabriel García Márquez em O Amor nos Tempos da Cólera.
05 março 2014
"ADOECER", de HÉLIA CORREIA
Ofélia (1852), de John Everett Millais
Uma obra de ficção inspirada em Elizabeth Eleanor Siddal (1829
– 1862), poeta, pintora e modelo de
artistas da Irmandade Pré-Rafaelita como Walter
Deverell, William
Holman Hunt, John
Everett Millais e Dante
Gabriel Rossetti. Amanhã na Comunidade de Leitores “Linguagem Literária e Pictórica”, Biblioteca
Municipal de Cascais.
03 março 2014
FALANDO DE "ORÍON"...
Publicado em Ferrara, Itália, no ano de 5313, 1553 da era de Cristo - "Portugal Ano 5253, Quando mandaram os mininos aos lagartos".
A PRÓXIMA LEITURA, para 28 de Março
Abro no último capítulo, e encontro isto:
" Enriquecido com os proventos da sua mercancia, comprara em Lisboa o nosso Jairo uma fiada de casas, corria o ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e dezoito, junto à porta que designam do Corpo Santo. E nas cercanias da sua propriedade passava ele compridas temporadas, transferindo-se a S. Tomé apenas cada biénio, a vigiar qualquer negócio de vulto que se lhe oferecesse. Baixavam-lhe a cabeça os vizinhos, mesteirais de ferro e de latoaria pela sua maior parte, tendo-o por extremado prémio do local. E mudara-se-lhe o estado, isto por efeito das escravas favoritas que sempre o rodeavam, numa perpétua assembleia de bruxas e de onzeneiras, fêmeas que arresolviam quanto cumpria ou não cumpria fazer-se, regaladas pelos doces de tacho e de fornalha que a todo o instante se mandava ir buscar ao mosteiro da Trindade, não longe dali."
Muitas vezes, começo as leituras pelos últimos capítulos.
02 março 2014
CARTAGENA DAS ÍNDIAS NOS TEMPOS DA CÓLERA-MORBO
Nas minhas
leituras, fico a pensar, às vezes, em pequenos detalhes sem importância. Como este,
por exemplo, de o doutor Juvenal Urbino ter sido aluno, em Paris, do mais
destacado epidemiólogo do seu tempo, o professor Adrien Proust, pai do autor da
Recherche.
No Clube de
Leitura do Museu Ferreira de Castro na próxima sexta-feira. Em Dezembro, na
nossa Comunidade.
01 março 2014
"TERRA SONÂMBULA", DE MIA COUTO, O ELOGIO DA NARRATIVA
Onze
cadernos de histórias encaixados na narrativa matriz, o poder do conto que leva
o velho Tuahir a pedir a Muidinga: “(…) leia em voz alta que é para me
dormecer”. O contador de histórias tem
esse poder de adormecer os ouvintes, um adormecimento que não é, porém, a
recusa ou o cansaço da narrativa, mas a forma mágica de com ela entrar no mundo
dos sonhos. Não sonhamos a valer quando estamos acordados. “(…)vamos para
dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir”, diz Tuahir no sétimo
capítulo.
Também
o contador de histórias se transporta no dorso do sonho, se sonha. De seu pai,
o velho Taímo, diz Kindzu no primeiro caderno: “As estórias dele faziam o nosso
lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o
sono lhe apagava a boca antes do desfecho”. No segundo caderno, quando o velho
é já uma sombra dos mundos do além em súbitas aparições nos caminhos viventes,
diz o buscador dos guerreiros naparamas: “ – Pai, fica mais um bocadinho.” A
razão deste pedido é explicada da seguinte maneira: “Eu desejava que ele me contasse as histórias que
nunca tinha desfiado”.
Uma
história fantástica é contada por Quintino no oitavo caderno: o falecido Romão
Pinto, seu patrão colonial, forçando a porta do mundo dos vivos.
Uma
história de vida e de morte aquela que Farida conta a Kindzu: “– Por favor, me escuta…”, diz ela. “Ela só
tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história”, vem no “Quarto Caderno, A Filha do Céu”, aquele em
que “a mulher se trocou por palavra até quase ser manhã.”
É
da condição humana trocarmo-nos por palavras, a aventura da narratividade,
aedos e rapsodos que somos desde o fundo dos tempos. Narramos e narramo-nos
para nos tornarmos melhores, para não esquecermos, porque o esquecimento é a
única morte definitiva. E se às vezes narramos certo, outras inventamos,
porque, como diz Saramago no Manual de
Pintura e Caligrafia, “a invenção não pode ser confrontada com a realidade,
logo, tem mais probabilidades de ser exacta”. “ – Irmã, peço: me conte
histórias!”, diz Farida quando regressa à Missão e se encontra com a freira
Lúcia.
Invenção
e efabulação, fontes da narratividade-sonho. As histórias contadas são sonhos
ou mentiras em que acreditamos, são cantos de sereia: atraem-nos, agarram-nos,
transformam-nos. Por isso Ulisses mandou que o atassem ao mastro da sua nau:
nunca chegaria a Ítaca, nunca voltaria aos braços de Penélope se se deixasse
prender pelas vozes melodiosas das
filhas do mar.
O
mar é o grande livro do conto, os barcos são as suas páginas. Há mar e barcos
em Terra Sonâmbula. Foi no mar que se
sepultou Taímo, pai de Kindzu, amador de sonhos e de bebidas fortes. Tuahir não
quis morrer no mangal, precisava de ficar no autêntico mar: “Ondas Escrevendo Estórias”, título do décimo
primeiro capítulo. “Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as
crianças do inteiro mundo”, fecho do capítulo.
A
efabulação é uma terapia porque a realidade é, por vezes, insuportável. Só a
imaginação nos salva. Virgínia, Virginha, Virgininha, esposa de Romão Pinto,
inventa parentes e cartas escritas por eles para poder acreditar que existem.
Ou seja, conta histórias a si mesma para se deixar adormecer e sonhar. No nono capítulo, Tuhair fala a Muidinga no
pescador Nipita. O jovem quer conhecer a sua história: “ Conte, tio”, pede. “Se
é uma estória me conte, nem importa se é verdade.” O velho conta:
“(…) Nipita, um pescador que fora
esfaquinhado pelos bandos armados. Acontecera de noite, o desgraçado voltou de
madrugada, vinha buscar as tripas. Deixei-lhes
aqui, esbarriguei-me num nadinha, disse num derradeiro sopro. Agora estando
quase para morrer, não podia se presentar perante a cova sem estar devidamente
completo. Alguém ainda lhe disse: vai que
nós te levamos depois as partes que te faltam. E ele se sepultou, assim,
destripado. Nunca mais ninguém lhe levou os restos de suas entranhas. O
falecido pescador, agora, passava a morte a maldiçoar os viventes.”
Terra Sonâmbula é a voz da narrativa oral africana
tornada escrita: árvores fabulosas, aves mágicas que falam, fazedores de rios, espíritos de mortos
desconsolados atormentando os viventes, as maldições derramadas nas vidas difíceis
dos homens. E, tornando essas vidas ainda mais invividas, a guerra e a fome, os
políticos buscando vantagem – os administraidores,
como diz Carolinda – , o clima de caos e convulsão social: um país acabado
de nascer e já comparado às baleias que vêm agonizar na praia, assinala Kindzu
no primeiro caderno.
Na
narrativa primeira e nas que dela saem estão presentes símbolos de vidas bloqueadas:
Tuahir e Muidinga acolhem-se a um machimbombo queimado que nunca se fará à
estrada; Farida vive num navio encalhado, ao lado de uma ilha com um farol sem
luz.
A
guerra aponta ao povo o destino da animalização: é ver Junhito, irmão de Kindzu,
transformado em galo. “Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação”,
diz o feiticeiro na arenga apocalíptica do último caderno. Porém, é pela sua
voz de ancestralidade mágica que chega uma mensagem de esperança:
“(…) surgirão os doces acordes de uma
canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a
lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa
voz nos dará a força de um novo
princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes
abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isto se fará se
formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos
morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta
guerra nos converteu.”
Finalmente,
Junhito desbicha-se; Kindzu é imaginariamente
um guerreiro naparama, os braços cobertos de lenços e uma zagaia nas mãos. Gaspar,
procurado e nunca encontrado, é o guardião das histórias quando o seu narrador
se apaga. No primeiro caderno, fica dito que seria assim: “Acendo a estória, me
apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” Esta é
a condição do contador de histórias perante os seus ouvintes.
Para
além de um país que nasce e de uma guerra que recusa morrer, para além do
sofrimento dos homens, há em Terra
Sonâmbula o poder desmedido do sonho e da crença, o amor dos ancestrais
valores que os sistemas políticos, sempre efémeros, não conseguem matar; e a
presença dessa luz forte – talvez como a
do farol que Virgínia queria construir em terra, longe do mar, em lugar
aparentemente indevido – que é a que emana da narrativa e dos seus narradores. Uma
luz que redime e melhora, sempre abrigada no coração dos homens. Narrar e ouvir
narrar é como sonhar, e o sonho, diz-se no livro, é o olho da vida.
(= Lido na sessão de 28/2/2014 =)
25 fevereiro 2014
EÇA DE QUEIROZ, SEMPRE!
E o sonho da desforra faz suportar a realidade da catástrofe...
EÇA DE QUEIROZ, A Catástrofe
EÇA DE QUEIROZ, A Catástrofe
PÓVOA DE VARZIM, estátua de Eça de Queiroz na praça da Domus Municipalis (fotografias de 20/2/2014).
24 fevereiro 2014
Actividade na nossa Biblioteca
10 fevereiro 2014
E a adaptação ao cinema
"Terra Sonâmbula" de Mia Couto, 28 de Fevereiro às 21h00
Estamos de volta a Mia Couto e a um romance que nos leva aos tempos de guerra em Moçambique.
Então vamos lá ...
01 fevereiro 2014
A Paixão dos Ossos - Urbano Tavares Rodrigues e Ferreira de Castro, memórias, a natureza, a escrita e a vida
Texto -- livre
na forma, rigoroso no conteúdo -- a partir de uma conversa com Urbano Tavares
Rodrigues sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio
de 2013
O Ferreira de Castro era um homem com
um grande amor à paisagem. Com esse amor ensinou-me a ver Sintra, a conhecer a
região. Encontrávamo-nos muitas vezes num cafezinho ali no largo do palácio da
vila, não me lembro agora do nome. Mais no Verão e na Primavera, que ele tinha
medo do Inverno, agasalhava-se, protegia-se muito.
Também nos juntávamos em Lisboa, mas em
Sintra percorríamos os caminhos e fazíamos o roteiro das fontes. As fontes, do
que me recordo, eram das coisas que mais o apaixonavam na serra. E
visitávamo-las todas. Também as árvores? Pode ser, mas das árvores não sei.
Ele teve outra enorme paixão, a Diana
de Lis. Foi correspondida? Não me lembro.
O Ferreira de Castro… era bom como o
pão. Eu gostava muito dele, admirava-o imenso, quando morreu fartei-me de
chorar. Formámos-lhe uma guarda-de-honra de escritores no funeral: eu, o Mário
Ventura Henriques, a Natália Correia, o João de Melo e outros. Dos que privaram
com ele estão vivos ainda a Agustina e o João de Melo, que foi meu assistente
em Letras, como eu fui de Vitorino Nemésio.
O Ferreira de Castro e os amigos reuniam-se
num café ali no Chiado, creio que se chamava mesmo “Café Chiado”. Os amigos
adoravam-no. Eram mais velhos que nós. Às vezes juntava-me eu, o Armindo
Rodrigues, poeta, e o pessoal das Belas Artes, como o Manuel da Fonseca. Uma
tarde, o Ferreira de Castro estava sentado cá fora, eu ia a passar, era jovem,
muito magro, as raparigas gostavam de mim e umas vieram deitar-me os braços ao
pescoço. Ele já homem maduro, sério, muito discreto, e diz para os amigos: “Não
percebo a sorte deste tipo com as mulheres! Eu compreendo a paixão da carne,
não compreendo é a paixão dos ossos”. Tinha este humor, reservado apenas a um
círculo muito próximo.
Naquela época eu parava mais noutra
tertúlia, a do Abelaira. Uma vez estávamos ali sentados uns sete ou oito, o
José Gomes Ferreira entre eles, tínhamos acabado de escrever um papel contra o
governo e recolhíamos assinaturas. Vemos o Herberto Helder descer o Chiado, pedimos-lhe
a dele; mas, sendo funcionário da Emissora, se assinasse perdia logo o lugar,
era uma situação dramática. E nós compreendemos isso.
Houve um tempo em que acumulei o
trabalho de redação do Diário de Lisboa
e d’O Século, onde o Ferreira de
Castro também foi redator. Às vezes, à noite, n’O Século havia pouco que fazer. Nessas horas vazias de piquete, eu escrevia
contos e romances. Parece-me que ele chegou a fazer o mesmo.
O Cunhal, que também tinha grande
respeito e estima pelo Ferreira de Castro, achou belíssima uma intervenção que eu
fiz um dia no círculo dos intelectuais do Partido Comunista. Reclamou com a
célula, que eu estava ali mal, que não sabiam aproveitar as pessoas, e convidou-me
para ser um dos dirigentes do setor intelectual. E pronto, fiquei a ser. As reuniões
do partido, nessa época, decorriam à noite e eram chatas; só animavam com o
Manuel da Fonseca, contava anedotas, toda a gente se ria. Agora querem que eu continue,
eu continuo.
Era a personificação da delicadeza, o
Ferreira de Castro, fosse entre amigos ou com qualquer admirador na rua. Uma
vez fui pedir-lhe financiamento para um 1º de Maio, já não sei de que ano, e
ele a desculpar-se: “Eh pá, sabes que eu sou completamente antifascista. Mas
não sou comunista…”. Era um grande coração. E eu vim de lá com o dinheiro.
Alguns neorrealistas acusaram-no de
escrever mal. Muito injustamente. A Lã e
a Neve, por exemplo, é um livro belíssimo, aquele que mais se aproxima no
neorrealismo. Pessoalmente, o meu preferido é A Curva da Estrada, decorrido em Espanha, com um protagonista político
assaltado de dúvidas.
Com o neorrealismo, o socialismo quis
evacuar o escritor da obra . Mas o escritor está lá e faz falta.
A literatura do Ferreira de Castro
foi considerada “impura” num período, até hoje, em que se combate toda a obra de
empenhamento social e que deixou cair um pouco no esquecimento os neorrealistas.
Continua esta moda de outros valores, da literatura de consumo fácil, que não presta, que é lixo. Ainda há bons
escritores, isso sim, mas empenhados politicamente, poucos.
Eu combato o que se está a passar
atualmente. Tanto quanto eu posso. Aqui em casa, sem poder sair à rua, escrevo
e o que digo é absolutamente contra este governo, este período de ditadura do
capitalismo ultraliberal, neofascista e sem vergonha, e os negócios sujos por
trás dele. Já combatia quando tomei partido pelo Delgado, e em consequência me
despediram e me silenciaram. Uma Pedrada
no Charco escapou à apreensão graças ao Prémio José Malheiros, da Academia
das Ciências, 1958, prémio que o Ferreira de Castro recebera duas décadas
antes.
A ele pouparam-no, pelo prestígio
internacional. Enquanto escritor, eu não sentia a autocensura que tanto o
atormentava. Nós escrevíamos tudo codificado, usávamos de muita imaginação para
contornar a censura.
E eu tinha uma enorme coragem física.
Da última vez em que estive preso foi terrível. Cinco dias e cinco noites sem
dormir, e quando finalmente pude descansar só conseguia dormir uma hora por
dia. O médico de Caxias garantiu-me que não era fascista, que admirava a minha
obra, tratou-me por doutor e deu-me um valium inútil. Eram dores constantes no
corpo todo, enxaquecas, dores nos dedos. Geralmente os carcereiros são maus, mas
o meu não era. Disse-me que só tinha visto sofrer assim tanto o Pulido Valente
e perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim. “Pode. Está lá fora um saco com o meu nome. Lá
dentro estão uns supositórios analgésicos. Se me trouxer um…”. Não eram autorizados
a isso, claro, mas ele foi buscá-lo. Então dormi. Soltaram-me com receio do
movimento pela minha libertação, criado em 1969, aqui e lá fora. Em França
movimentou o Sartre e outros, em Portugal muitos, entre eles o Ferreira de Castro,
que sempre assumiu posição a meu favor.
Dos poetas, ele conviveu com Ruy Belo
e Herberto Helder, que me lembre. O Ruy Belo escreveu um poema, “Muriel”,
belíssimo. O nome da mulher do Ferreira de Castro, Elena Muriel, mas não
inspirado nela. Muito bonita. Como era também muito bonita a Maria Judite de
Carvalho, minha mulher, mãe da minha filha Isabel. É ela nesta fotografia.
Tinha uns olhos verdes e cabelo louro escuro, que aqui parece ainda mais escuro,
porque ela o pintava. Morreu estupidamente, com um cancro. E custou-me tanto, tanto,
eu tinha um carinho tão grande, um amor tão grande por ela.
Não me lembro de pormenores sobre a relação do Ferreira de Castro com a natureza,
com os rios, o campo ou os animais. Foi há muitos anos e esse tópico não era
importante. O importante eram as questões políticas e sociais. Mas lembro-me das
nossas conversas, das memórias vivas que guardava de Belém-do-Pará e da vida de
sofrimento que lá passou. Falava também muito do parente que não lhe deu apoio,
desse abandono. Lembro-me de ele evocar, com muita ternura, o Amazonas e o
seringal para onde emigrou rapazinho. Também isso me suscitou curiosidade dos
locais cenário d’A Selva, que é um
livro impressionante. E fui lá, percorri-os um a um, fiquei impressionado.
O Ferreira de Castro tinha uma
comunhão quase mística com a natureza, como eu também tenho. Não é exatamente
uma comunhão mística: é quase mística.
AnaCristinaCarvalho / Maio e Agosto de 2013
30 janeiro 2014
ANTES QUE ANOITEÇA
PALÁCIO DA FLOR DA MURTA . A VISITA
Palácio da Flor da
Murta, ou Quinta da Terrugem, Paço de Arcos, Oeiras... o que resta de um vasto
domínio senhorial, com origem patrimonial no século XVI. Visita cumprida,
cumpre agora dela dar parte.
Primeira
desilusão: embora classificado como Imóvel de valor concelhio, o edifício, seus
anexos e espaços exteriores vedados, estão alugados pela CMO à empresa SANEST,
a qual, facultando o acesso à visita programada, limita-o aos exteriores, não
admitindo a entrada no edifício... Como estava a chover, ainda pudemos ver a
adega antiga, transformada em sala polivalente. Enfim, os novos senhores em
seus domínios!
Pontos
importantes da visita: a estrutura porticada da fachada, permitindo ver de
perto as colunas de mármore com seus capitéis e o lintel da porta da capela
brasonado e datado (1549); o silhar de azulejos, com motivo do século XVI,
considerados os mais antigos do concelho (outros azulejos, igualmente valiosos,
foram roubados em 1999 da capela…); a estrutura hidráulica de abastecimento ao
palácio e espaços verdes, que se mantém, excecionalmente, desde o século XVIII,
conforme nos explicou o Fernando Lopes, a partir de condutas enterradas
(das quais ainda se vislumbram na paisagem os respiradouros), parte de um
sistema regional de abastecimento de água, contemporâneo (e subsidiário?) do
Aqueduto das Águas Livres (voltamos, também aqui, ao Magnífico). O que subsiste visível são tanques de rega e os lagos
ornamentais, como exemplo da utilização de um recurso natural, em geral
desperdiçado.
Quanto
à história da Flor da Murta, ela tem muito
que se lhe diga, de tal maneira que, entre o documentado e o deduzido, já deu
azo a uma bibliografia, Luísa Clara de
Portugal, A Flor da Murta, 1702-1779, da autoria de Alice Lázaro, Chiado
Editora.
A
descrição da propriedade, como era cerca de 1940, tem-na Memórias da Linha, da Branca de Gonta Colaço e Maria Archer. Se
estas autoras, que já se queixavam das alterações que a paisagem ia sofrendo,
pudessem hoje voltar ali, iam perder a fala!
29 janeiro 2014
HERVÉ VILARD, Capri c'est fini
Capri, c'est fini,
Et dire que c'était la ville
De mon premier amour,
Capri, c'est fini,
Je ne crois pas
Que j'y retournerai un jour. :) :) :) :)
27 janeiro 2014
TAMBÉM CLARICE LISPECTOR
Também ontem, na FCC, alheada dos azulejos, mas aproveitando ter ido ver a Aula Pública da Sofia (Projeto 10x10), andei pela livraria e trouxe o Catálogo da exposição sobre a Lispector, que tivémos oportunidade de visitar entre Abril e Junho de 2013 (e Perto do Coração Selvagem).
E não teria reparado nesta fotografia, na página 54, não fora o facto de o local da mesma ser a Villa San Michele em Capri: Clarice está sentada no parapeito do terraço exterior, com a mão esquerda pousada sobre o flanco da esfinge egípcia de granito, que Axel Munthe colocou no cimo do promontório, vigiando a Baía de Nápoles e o Vesúvio.
Clarice Lispector chegou a Nápoles em julho de 1944, iniciando o período de 16 anos longe do Brasil, enquanto acompanhava as missões diplomáticas do marido e escrevia.
Sem mais conjeturas, permitam-me que ligue esta imagem às palavras de Nélida Piñon, que a acompanhou até ao fim:
" Clarice era assim. Ia direto ao coração das palavras e dos sentimentos. Conhecia a linha reta para ser sincera. Por isso, quando o arpão do destino, naquela sexta feira de 1977, atingiu-lhe o coração às 10.20h da manhã, paralisando sua mão dentro da minha, compreendi que Clarice havia afinal esgotado o denso mistério que lhe frequentara a vida e a obra. E que embora a morte com a sua inapelável autoridade nos tivesse liberado para a tarefa de decifrar seu enigma--marca singular do seu luminoso génio--, tudo nela prometia resistir ao assédio da mais persistente exegese."
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