12 março 2014

PARIS - LES HALLES

Há um mês atrás, em peregrinação à Cidade de tantos Nomes, como V.Hugo, Proust e também  R.Barthes, já agora, no meio das emoções de revisitação deparou-se-me o choque: onde está Les Halles, o Forum? Um estaleiro gigante substituía à superfície a imagem esperada, aquela que perseguia, ainda por cima, a consciência arquitetónica internacional, pois o "buraco" que veio substituir os pavilhões do século XIX não correspondia a nada de realmente importante do ponto de vista da arte e da intervenção urbana. De tal forma que, na sequência eventual deste erro, o local se tinha degradado enormemente. Seria caso para procurar uma solução... Agora este gesto de "bota abaixo e sai uma coisa completamente diferente", só mesmo numa cidade como Paris! Quis então trazer a este forum virtual algumas imagens, para vosso deleite e informação, como primeiro capítulo de outras pequenas surpresas e pormenores que entretanto me aprouver partilhar.

Em relação a Les Halles, temos uma imagem de como era, colhida na Net (não fui à procura das fotos dos anos 80…); igualmente uma ideia do que seriam Les Halles, o grande mercado abastecedor; o conjunto do projeto urbano; a imagem que se colhe no local: uma estrutura pesadíssima, cuja imagem final deverá ser de algo extremamente leve, como uma nuvem sobre a praça central… Quem lá for no ano que vem, poderá trazer a imagem do resultado final.






11 março 2014

LEITURA E DESEJO

“Sobre a leitura” é um escrito de Roland Barthes para a Writing Conference de Luchon, de 1975. Está publicado em O Rumor da Língua, Edições 70, pp. 31-35.
Na terceira parte deste texto, o crítico francês aborda as relações entre leitura e desejo, dizendo: “(…) não há dúvida de que existe um erotismo da leitura (na leitura, o desejo está ali com o seu objecto, o que é a definição do erotismo).”
Dois traços são apresentados em defesa da tese: a identificação do sujeito humano que lê (o lente) com o sujeito amoroso e o sujeito místico; e a presença na leitura-desejo de todas as emoções do corpo, desde a dor à volúpia.
Teresa de Ávila fazia da leitura o substituto da oração mental; o lente isola-se e fecha-se (como o jovem narrador da Recherche que se fechava na casa de banho, segundo um conhecido episódio daquela obra, para se entregar ao “prazer solitário” de ler) numa relação dual com o objecto da leitura que não é distinta do recolhimento da oração (orador-Deus) ou da fruição do prazer amoroso (amante-amado).
A relação da leitura com a analidade, deduzida da referida passagem da Recherche, é finalmente sustentada por Barthes. E isto é matéria que certamente provocará ou indignará os nossos leitores em função das suas respectivas sensibilidades (uns mais sensíveis que outros, atrevo-me a admitir) –  se é que vão ler este escrito, do que sou obrigado a duvidar não só pelas escassas visitas ao blogue, como pela poalha de silêncio solene e frio que grassa no espaço virtual dos comentários.   

10 março 2014

08 março 2014

HOJE, 100 ANOS DO DIA TRIUNFAL DE FERNANDO PESSOA - O NASCIMENTO DOS HETERÓNIMOS

"Anno e meio, ou dois annos, depois lembrei-me um dia de fazer um partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucolico, de especie complicada, e apresentar-lh’o, já me não lembro como, em qualquer especie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma commoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa especie de extase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triumphal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguem em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da phrase: apparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive."
Da carta de Fernando Pessoa para Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935, publicada pela primeira vez no nº 49, de Julho de 1937, da revista presença.

06 março 2014

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, 6 de Março de 1927, 87 ANOS


O GRITO DE DIGNA PARDO ANTE A QUEDA MORTAL DE SEU AMO JUVENAL URBINO* 

Foi às quatro horas e sete minutos da tarde de Domingo 
de Pentecostes, desciam sobre as casas as línguas flamejantes
do divino Paracleto. O calor anunciava chuva, o mar rumorejava
dentro de todos os búzios. Insolente, o papagaio fugira
para os ramos altos da mangueira, e uma escada romba 
preparava-se para escrever uma página da história da infelicidade.
Nem sequer teve tempo de encomendar a alma: o corpo
desprendeu-se da escada como um fruto podre
caído ao solo em súbita demolição de músculos e ossos,
e nenhum anjo-da-guarda  saiu dos catecismos para  lhe aparar
a queda. O grito da criada Digna Pardo trespassou de pânico
as cúpulas de ouro da cidade velha, os pássaros calaram-se,
enquanto Deus, indiferente ao destino dos homens,
sorria de tédio e ócio à sombra roxa da sua eternidade.

* Digna Pardo e Juvenal Urbino são personagens de Gabriel García Márquez em O Amor nos Tempos da Cólera.

05 março 2014

"ADOECER", de HÉLIA CORREIA

Ofélia (1852), de John Everett Millais
 
Uma obra de ficção inspirada em Elizabeth Eleanor Siddal (1829 – 1862), poeta,  pintora e modelo de artistas da Irmandade Pré-Rafaelita como Walter Deverell,  William Holman Hunt,  John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti. Amanhã na Comunidade de Leitores  “Linguagem Literária e Pictórica”, Biblioteca Municipal de Cascais.


03 março 2014

FALANDO DE "ORÍON"...

Publicado em Ferrara, Itália, no ano de 5313, 1553 da era de Cristo - "Portugal Ano 5253, Quando mandaram os mininos aos lagartos".

A PRÓXIMA LEITURA, para 28 de Março

Abro no último capítulo, e encontro isto:
" Enriquecido com os proventos da sua mercancia, comprara em Lisboa o nosso Jairo uma fiada de casas, corria o ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e dezoito, junto à porta que designam do Corpo Santo. E nas cercanias da sua propriedade passava ele compridas temporadas, transferindo-se a S. Tomé apenas cada biénio, a vigiar qualquer negócio de vulto que se lhe oferecesse. Baixavam-lhe a cabeça os vizinhos, mesteirais de ferro e de latoaria pela sua maior parte, tendo-o por extremado prémio do local. E mudara-se-lhe o estado, isto por efeito das escravas favoritas que sempre o rodeavam, numa perpétua assembleia de bruxas e de onzeneiras, fêmeas que arresolviam quanto cumpria ou não cumpria fazer-se, regaladas pelos doces de tacho e de fornalha que a todo o instante se mandava ir buscar ao mosteiro da Trindade, não longe dali."
Muitas vezes, começo as leituras pelos últimos capítulos.
 

02 março 2014

CARTAGENA DAS ÍNDIAS NOS TEMPOS DA CÓLERA-MORBO


Nas minhas leituras, fico a pensar, às vezes, em pequenos detalhes sem importância. Como este, por exemplo, de o doutor Juvenal Urbino ter sido aluno, em Paris, do mais destacado epidemiólogo do seu tempo, o professor Adrien Proust, pai do autor da Recherche.
No Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro na próxima sexta-feira. Em Dezembro, na nossa Comunidade.

01 março 2014

"TERRA SONÂMBULA", DE MIA COUTO, O ELOGIO DA NARRATIVA


Onze cadernos de histórias encaixados na narrativa matriz, o poder do conto que leva o velho Tuahir a pedir a Muidinga: “(…) leia em voz alta que é para me dormecer”.  O contador de histórias tem esse poder de adormecer os ouvintes, um adormecimento que não é, porém, a recusa ou o cansaço da narrativa, mas a forma mágica de com ela entrar no mundo dos sonhos. Não sonhamos a valer quando estamos acordados. “(…)vamos para dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir”, diz Tuahir no sétimo capítulo.
Também o contador de histórias se transporta no dorso do sonho, se sonha. De seu pai, o velho Taímo, diz Kindzu no primeiro caderno: “As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe apagava a boca antes do desfecho”. No segundo caderno, quando o velho é já uma sombra dos mundos do além em súbitas aparições nos caminhos viventes, diz o buscador dos guerreiros naparamas: “ – Pai, fica mais um bocadinho.” A razão deste pedido é explicada da seguinte maneira:  “Eu desejava que ele me contasse as histórias que nunca tinha desfiado”.     
            Uma história fantástica é contada por Quintino no oitavo caderno: o falecido Romão Pinto, seu patrão colonial, forçando a porta do mundo dos vivos.
Uma história de vida e de morte aquela que Farida conta a Kindzu: “–  Por favor, me escuta…”, diz ela. “Ela só tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história”, vem  no “Quarto Caderno, A Filha do Céu”, aquele em que “a mulher se trocou por palavra até quase ser manhã.”
É da condição humana trocarmo-nos por palavras, a aventura da narratividade, aedos e rapsodos que somos desde o fundo dos tempos. Narramos e narramo-nos para nos tornarmos melhores, para não esquecermos, porque o esquecimento é a única morte definitiva. E se às vezes narramos certo, outras inventamos, porque, como diz Saramago no Manual de Pintura e Caligrafia, “a invenção não pode ser confrontada com a realidade, logo, tem mais probabilidades de ser exacta”. “ – Irmã, peço: me conte histórias!”, diz Farida quando regressa à Missão e se encontra com a freira Lúcia.
Invenção e efabulação, fontes da narratividade-sonho. As histórias contadas são sonhos ou mentiras em que acreditamos, são cantos de sereia: atraem-nos, agarram-nos, transformam-nos. Por isso Ulisses mandou que o atassem ao mastro da sua nau: nunca chegaria a Ítaca, nunca voltaria aos braços de Penélope se se deixasse prender pelas vozes  melodiosas das filhas do mar.
O mar é o grande livro do conto, os barcos são as suas páginas. Há mar e barcos em Terra Sonâmbula. Foi no mar que se sepultou Taímo, pai de Kindzu, amador de sonhos e de bebidas fortes. Tuahir não quis morrer no mangal, precisava de ficar no autêntico mar: “Ondas Escrevendo Estórias”, título do décimo primeiro capítulo. “Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo”, fecho do capítulo.
A efabulação é uma terapia porque a realidade é, por vezes, insuportável. Só a imaginação nos salva. Virgínia, Virginha, Virgininha, esposa de Romão Pinto, inventa parentes e cartas escritas por eles para poder acreditar que existem. Ou seja, conta histórias a si mesma para se deixar adormecer e sonhar.  No nono capítulo, Tuhair fala a Muidinga no pescador Nipita. O jovem quer conhecer a sua história: “ Conte, tio”, pede. “Se é uma estória me conte, nem importa se é verdade.” O velho conta:

“(…) Nipita, um pescador que fora esfaquinhado pelos bandos armados. Acontecera de noite, o desgraçado voltou de madrugada, vinha buscar as tripas. Deixei-lhes aqui, esbarriguei-me num nadinha, disse num derradeiro sopro. Agora estando quase para morrer, não podia se presentar perante a cova sem estar devidamente completo. Alguém ainda lhe disse: vai que nós te levamos depois as partes que te faltam. E ele se sepultou, assim, destripado. Nunca mais ninguém lhe levou os restos de suas entranhas. O falecido pescador, agora, passava a morte a maldiçoar os viventes.”

Terra Sonâmbula é a voz da narrativa oral africana tornada escrita: árvores fabulosas, aves mágicas que falam, fazedores de rios, espíritos de mortos desconsolados atormentando os viventes, as maldições derramadas nas vidas difíceis dos homens. E, tornando essas vidas ainda mais invividas, a guerra e a fome, os políticos buscando vantagem – os administraidores, como diz Carolinda – , o clima de caos e convulsão social: um país acabado de nascer e já comparado às baleias que vêm agonizar na praia, assinala Kindzu no primeiro caderno.
Na narrativa primeira e nas que dela saem estão presentes símbolos de vidas bloqueadas: Tuahir e Muidinga acolhem-se a um machimbombo queimado que nunca se fará à estrada; Farida vive num navio encalhado, ao lado de uma ilha com um farol sem luz.
A guerra aponta ao povo o destino da animalização: é ver Junhito, irmão de Kindzu, transformado em galo. “Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação”, diz o feiticeiro na arenga apocalíptica do último caderno. Porém, é pela sua voz de ancestralidade mágica que chega uma mensagem de esperança:

“(…) surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa voz  nos dará a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isto se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu.”

Finalmente, Junhito desbicha-se; Kindzu é imaginariamente um guerreiro naparama, os braços cobertos de lenços e uma zagaia nas mãos. Gaspar, procurado e nunca encontrado, é o guardião das histórias quando o seu narrador se apaga. No primeiro caderno, fica dito que seria assim: “Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” Esta é a condição do contador de histórias perante os seus ouvintes.
            Para além de um país que nasce e de uma guerra que recusa morrer, para além do sofrimento dos homens, há em Terra Sonâmbula o poder desmedido do sonho e da crença, o amor dos ancestrais valores que os sistemas políticos, sempre efémeros, não conseguem matar; e a presença dessa luz forte – talvez  como a do farol que Virgínia queria construir em terra, longe do mar, em lugar aparentemente indevido – que é a que emana da narrativa e dos seus narradores. Uma luz que redime e melhora, sempre abrigada no coração dos homens. Narrar e ouvir narrar é como sonhar, e o sonho, diz-se no livro, é o olho da vida.

(= Lido na sessão de 28/2/2014 =)
 

25 fevereiro 2014

EÇA DE QUEIROZ, SEMPRE!

E o sonho da desforra faz suportar a realidade da catástrofe...

EÇA DE QUEIROZ, A Catástrofe

PÓVOA DE VARZIM, estátua de Eça de Queiroz na praça da Domus Municipalis (fotografias de 20/2/2014). 

01 fevereiro 2014

A Paixão dos Ossos - Urbano Tavares Rodrigues e Ferreira de Castro, memórias, a natureza, a escrita e a vida



Texto -- livre na forma, rigoroso no conteúdo -- a partir de uma conversa com Urbano Tavares Rodrigues sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio de 2013
 
O Ferreira de Castro era um homem com um grande amor à paisagem. Com esse amor ensinou-me a ver Sintra, a conhecer a região. Encontrávamo-nos muitas vezes num cafezinho ali no largo do palácio da vila, não me lembro agora do nome. Mais no Verão e na Primavera, que ele tinha medo do Inverno, agasalhava-se, protegia-se muito.
            Também nos juntávamos em Lisboa, mas em Sintra percorríamos os caminhos e fazíamos o roteiro das fontes. As fontes, do que me recordo, eram das coisas que mais o apaixonavam na serra. E visitávamo-las todas. Também as árvores? Pode ser, mas das árvores não sei.
            Ele teve outra enorme paixão, a Diana de Lis. Foi correspondida? Não me lembro.
            O Ferreira de Castro… era bom como o pão. Eu gostava muito dele, admirava-o imenso, quando morreu fartei-me de chorar. Formámos-lhe uma guarda-de-honra de escritores no funeral: eu, o Mário Ventura Henriques, a Natália Correia, o João de Melo e outros. Dos que privaram com ele estão vivos ainda a Agustina e o João de Melo, que foi meu assistente em Letras, como eu fui de Vitorino Nemésio.
            O Ferreira de Castro e os amigos reuniam-se num café ali no Chiado, creio que se chamava mesmo “Café Chiado”. Os amigos adoravam-no. Eram mais velhos que nós. Às vezes juntava-me eu, o Armindo Rodrigues, poeta, e o pessoal das Belas Artes, como o Manuel da Fonseca. Uma tarde, o Ferreira de Castro estava sentado cá fora, eu ia a passar, era jovem, muito magro, as raparigas gostavam de mim e umas vieram deitar-me os braços ao pescoço. Ele já homem maduro, sério, muito discreto, e diz para os amigos: “Não percebo a sorte deste tipo com as mulheres! Eu compreendo a paixão da carne, não compreendo é a paixão dos ossos”. Tinha este humor, reservado apenas a um círculo muito próximo.
            Naquela época eu parava mais noutra tertúlia, a do Abelaira. Uma vez estávamos ali sentados uns sete ou oito, o José Gomes Ferreira entre eles, tínhamos acabado de escrever um papel contra o governo e recolhíamos assinaturas. Vemos o Herberto Helder descer o Chiado, pedimos-lhe a dele; mas, sendo funcionário da Emissora, se assinasse perdia logo o lugar, era uma situação dramática. E nós compreendemos isso.
            Houve um tempo em que acumulei o trabalho de redação do Diário de Lisboa e d’O Século, onde o Ferreira de Castro também foi redator. Às vezes, à noite, n’O Século havia pouco que fazer. Nessas horas vazias de piquete, eu escrevia contos e romances. Parece-me que ele chegou a fazer o mesmo.
            O Cunhal, que também tinha grande respeito e estima pelo Ferreira de Castro, achou belíssima uma intervenção que eu fiz um dia no círculo dos intelectuais do Partido Comunista. Reclamou com a célula, que eu estava ali mal, que não sabiam aproveitar as pessoas, e convidou-me para ser um dos dirigentes do setor intelectual. E pronto, fiquei a ser. As reuniões do partido, nessa época, decorriam à noite e eram chatas; só animavam com o Manuel da Fonseca, contava anedotas, toda a gente se ria. Agora querem que eu continue, eu continuo.
            Era a personificação da delicadeza, o Ferreira de Castro, fosse entre amigos ou com qualquer admirador na rua. Uma vez fui pedir-lhe financiamento para um 1º de Maio, já não sei de que ano, e ele a desculpar-se: “Eh pá, sabes que eu sou completamente antifascista. Mas não sou comunista…”. Era um grande coração. E eu vim de lá com o dinheiro.
            Alguns neorrealistas acusaram-no de escrever mal. Muito injustamente. A Lã e a Neve, por exemplo, é um livro belíssimo, aquele que mais se aproxima no neorrealismo. Pessoalmente, o meu preferido é A Curva da Estrada, decorrido em Espanha, com um protagonista político assaltado de dúvidas.
            Com o neorrealismo, o socialismo quis evacuar o escritor da obra . Mas o escritor está lá e faz falta.
            A literatura do Ferreira de Castro foi considerada “impura” num período, até hoje, em que se combate toda a obra de empenhamento social e que deixou cair um pouco no esquecimento os neorrealistas. Continua esta moda de outros valores, da literatura de consumo fácil,  que não presta, que é lixo. Ainda há bons escritores, isso sim, mas empenhados politicamente, poucos.
            Eu combato o que se está a passar atualmente. Tanto quanto eu posso. Aqui em casa, sem poder sair à rua, escrevo e o que digo é absolutamente contra este governo, este período de ditadura do capitalismo ultraliberal, neofascista e sem vergonha, e os negócios sujos por trás dele. Já combatia quando tomei partido pelo Delgado, e em consequência me despediram e me silenciaram. Uma Pedrada no Charco escapou à apreensão graças ao Prémio José Malheiros, da Academia das Ciências, 1958, prémio que o Ferreira de Castro recebera duas décadas antes.
           A ele pouparam-no, pelo prestígio internacional. Enquanto escritor, eu não sentia a autocensura que tanto o atormentava. Nós escrevíamos tudo codificado, usávamos de muita imaginação para contornar a censura.
           E eu tinha uma enorme coragem física. Da última vez em que estive preso foi terrível. Cinco dias e cinco noites sem dormir, e quando finalmente pude descansar só conseguia dormir uma hora por dia. O médico de Caxias garantiu-me que não era fascista, que admirava a minha obra, tratou-me por doutor e deu-me um valium inútil. Eram dores constantes no corpo todo, enxaquecas, dores nos dedos. Geralmente os carcereiros são maus, mas o meu não era. Disse-me que só tinha visto sofrer assim tanto o Pulido Valente e perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim.  “Pode. Está lá fora um saco com o meu nome. Lá dentro estão uns supositórios analgésicos. Se me trouxer um…”. Não eram autorizados a isso, claro, mas ele foi buscá-lo. Então dormi. Soltaram-me com receio do movimento pela minha libertação, criado em 1969, aqui e lá fora. Em França movimentou o Sartre e outros, em Portugal muitos, entre eles o Ferreira de Castro, que sempre assumiu posição a meu favor.
           Dos poetas, ele conviveu com Ruy Belo e Herberto Helder, que me lembre. O Ruy Belo escreveu um poema, “Muriel”, belíssimo.   O nome da mulher do Ferreira de Castro, Elena Muriel, mas não inspirado nela. Muito bonita. Como era também muito bonita a Maria Judite de Carvalho, minha mulher, mãe da minha filha Isabel. É ela nesta fotografia. Tinha uns olhos verdes e cabelo louro escuro, que aqui parece ainda mais escuro, porque ela o pintava. Morreu estupidamente, com um cancro. E custou-me tanto, tanto, eu tinha um carinho tão grande, um amor tão grande por ela.
           Não me lembro de pormenores  sobre a relação do Ferreira de Castro com a natureza, com os rios, o campo ou os animais. Foi há muitos anos e esse tópico não era importante. O importante eram as questões políticas e sociais. Mas lembro-me das nossas conversas, das memórias vivas que guardava de Belém-do-Pará e da vida de sofrimento que lá passou. Falava também muito do parente que não lhe deu apoio, desse abandono. Lembro-me de ele evocar, com muita ternura, o Amazonas e o seringal para onde emigrou rapazinho. Também isso me suscitou curiosidade dos locais cenário d’A Selva, que é um livro impressionante. E fui lá, percorri-os um a um, fiquei impressionado.
           O Ferreira de Castro tinha uma comunhão quase mística com a natureza, como eu também tenho. Não é exatamente uma comunhão mística: é quase mística.


AnaCristinaCarvalho / Maio e Agosto de 2013
                                                                                                                                                                             
                                                                                                                                                                     
 

                                                        

30 janeiro 2014

ANTES QUE ANOITEÇA


Por coincidência, andando em busca de outras fontes, eis que se me depararam estes registos, de 30 de Janeiro de 2009... quem se lembra ainda das instalações do João e da participação da Cláudia, precisamente a proponente do livro desta sessão-- Azul Cobalto, da Patricia Highsmith? Aparecíamos à meia dúzia de cada vez, mais um, menos um. Tempos. Isto, antes que anoiteça. Há 5 anos.

PALÁCIO DA FLOR DA MURTA . A VISITA





Palácio da Flor da Murta, ou Quinta da Terrugem, Paço de Arcos, Oeiras... o que resta de um vasto domínio senhorial, com origem patrimonial no século XVI. Visita cumprida, cumpre agora dela dar parte. 
Primeira desilusão: embora classificado como Imóvel de valor concelhio, o edifício, seus anexos e espaços exteriores vedados, estão alugados pela CMO à empresa SANEST, a qual, facultando o acesso à visita programada, limita-o aos exteriores, não admitindo a entrada no edifício... Como estava a chover, ainda pudemos ver a adega antiga, transformada em sala polivalente. Enfim, os novos senhores em seus domínios!
Pontos importantes da visita: a estrutura porticada da fachada, permitindo ver de perto as colunas de mármore com seus capitéis e o lintel da porta da capela brasonado e datado (1549); o silhar de azulejos, com motivo do século XVI, considerados os mais antigos do concelho (outros azulejos, igualmente valiosos, foram roubados em 1999 da capela…); a estrutura hidráulica de abastecimento ao palácio e espaços verdes, que se mantém, excecionalmente, desde o século XVIII, conforme nos explicou o Fernando Lopes, a partir de condutas enterradas (das quais ainda se vislumbram na paisagem os respiradouros), parte de um sistema regional de abastecimento de água, contemporâneo (e subsidiário?) do Aqueduto das Águas Livres (voltamos, também aqui, ao Magnífico). O que subsiste visível são tanques de rega e os lagos ornamentais, como exemplo da utilização de um recurso natural, em geral desperdiçado.
Quanto à história da Flor da Murta, ela tem muito que se lhe diga, de tal maneira que, entre o documentado e o deduzido, já deu azo a uma bibliografia, Luísa Clara de Portugal, A Flor da Murta, 1702-1779, da autoria de Alice Lázaro, Chiado Editora.

A descrição da propriedade, como era cerca de 1940, tem-na Memórias da Linha, da Branca de Gonta Colaço e Maria Archer. Se estas autoras, que já se queixavam das alterações que a paisagem ia sofrendo, pudessem hoje voltar ali, iam perder a fala!

29 janeiro 2014

HERVÉ VILARD, Capri c'est fini



Capri, c'est fini,
Et dire que c'était la ville
De mon premier amour,
Capri, c'est fini,
Je ne crois pas
Que j'y retournerai un jour.       :)     :)     :)     :)

27 janeiro 2014

TAMBÉM CLARICE LISPECTOR





Também ontem, na FCC, alheada dos azulejos, mas aproveitando ter ido ver a Aula Pública da Sofia (Projeto 10x10), andei pela livraria e trouxe o Catálogo da exposição sobre a Lispector, que tivémos oportunidade de visitar entre Abril e Junho de 2013 (e Perto do Coração Selvagem).
E não teria reparado nesta fotografia, na página 54, não fora o facto de o local da mesma ser a Villa San Michele em Capri: Clarice está sentada no parapeito do terraço exterior, com a mão esquerda pousada sobre o flanco da esfinge egípcia de granito, que Axel Munthe colocou no cimo do promontório, vigiando a Baía de Nápoles e o Vesúvio.
Clarice Lispector chegou a Nápoles em julho de 1944, iniciando o período de 16 anos longe do Brasil, enquanto acompanhava as missões diplomáticas do marido e escrevia.
Sem mais conjeturas, permitam-me que ligue esta imagem às palavras de Nélida Piñon, que a acompanhou até ao fim:

" Clarice era assim. Ia direto ao coração das palavras e dos sentimentos. Conhecia a linha reta para ser sincera. Por isso, quando o arpão do destino, naquela sexta feira de 1977, atingiu-lhe o coração às 10.20h da manhã, paralisando sua mão dentro da minha, compreendi que Clarice havia afinal esgotado o denso mistério que lhe frequentara a vida e a obra. E que embora a morte com a sua inapelável autoridade nos tivesse liberado para a tarefa de decifrar seu enigma--marca singular do seu luminoso génio--, tudo nela prometia resistir ao assédio da mais persistente exegese."