Onze
cadernos de histórias encaixados na narrativa matriz, o poder do conto que leva
o velho Tuahir a pedir a Muidinga: “(…) leia em voz alta que é para me
dormecer”. O contador de histórias tem
esse poder de adormecer os ouvintes, um adormecimento que não é, porém, a
recusa ou o cansaço da narrativa, mas a forma mágica de com ela entrar no mundo
dos sonhos. Não sonhamos a valer quando estamos acordados. “(…)vamos para
dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir”, diz Tuahir no sétimo
capítulo.
Também
o contador de histórias se transporta no dorso do sonho, se sonha. De seu pai,
o velho Taímo, diz Kindzu no primeiro caderno: “As estórias dele faziam o nosso
lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o
sono lhe apagava a boca antes do desfecho”. No segundo caderno, quando o velho
é já uma sombra dos mundos do além em súbitas aparições nos caminhos viventes,
diz o buscador dos guerreiros naparamas: “ – Pai, fica mais um bocadinho.” A
razão deste pedido é explicada da seguinte maneira: “Eu desejava que ele me contasse as histórias que
nunca tinha desfiado”.
Uma
história fantástica é contada por Quintino no oitavo caderno: o falecido Romão
Pinto, seu patrão colonial, forçando a porta do mundo dos vivos.
Uma
história de vida e de morte aquela que Farida conta a Kindzu: “– Por favor, me escuta…”, diz ela. “Ela só
tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história”, vem no “Quarto Caderno, A Filha do Céu”, aquele em
que “a mulher se trocou por palavra até quase ser manhã.”
É
da condição humana trocarmo-nos por palavras, a aventura da narratividade,
aedos e rapsodos que somos desde o fundo dos tempos. Narramos e narramo-nos
para nos tornarmos melhores, para não esquecermos, porque o esquecimento é a
única morte definitiva. E se às vezes narramos certo, outras inventamos,
porque, como diz Saramago no Manual de
Pintura e Caligrafia, “a invenção não pode ser confrontada com a realidade,
logo, tem mais probabilidades de ser exacta”. “ – Irmã, peço: me conte
histórias!”, diz Farida quando regressa à Missão e se encontra com a freira
Lúcia.
Invenção
e efabulação, fontes da narratividade-sonho. As histórias contadas são sonhos
ou mentiras em que acreditamos, são cantos de sereia: atraem-nos, agarram-nos,
transformam-nos. Por isso Ulisses mandou que o atassem ao mastro da sua nau:
nunca chegaria a Ítaca, nunca voltaria aos braços de Penélope se se deixasse
prender pelas vozes melodiosas das
filhas do mar.
O
mar é o grande livro do conto, os barcos são as suas páginas. Há mar e barcos
em Terra Sonâmbula. Foi no mar que se
sepultou Taímo, pai de Kindzu, amador de sonhos e de bebidas fortes. Tuahir não
quis morrer no mangal, precisava de ficar no autêntico mar: “Ondas Escrevendo Estórias”, título do décimo
primeiro capítulo. “Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as
crianças do inteiro mundo”, fecho do capítulo.
A
efabulação é uma terapia porque a realidade é, por vezes, insuportável. Só a
imaginação nos salva. Virgínia, Virginha, Virgininha, esposa de Romão Pinto,
inventa parentes e cartas escritas por eles para poder acreditar que existem.
Ou seja, conta histórias a si mesma para se deixar adormecer e sonhar. No nono capítulo, Tuhair fala a Muidinga no
pescador Nipita. O jovem quer conhecer a sua história: “ Conte, tio”, pede. “Se
é uma estória me conte, nem importa se é verdade.” O velho conta:
“(…) Nipita, um pescador que fora
esfaquinhado pelos bandos armados. Acontecera de noite, o desgraçado voltou de
madrugada, vinha buscar as tripas. Deixei-lhes
aqui, esbarriguei-me num nadinha, disse num derradeiro sopro. Agora estando
quase para morrer, não podia se presentar perante a cova sem estar devidamente
completo. Alguém ainda lhe disse: vai que
nós te levamos depois as partes que te faltam. E ele se sepultou, assim,
destripado. Nunca mais ninguém lhe levou os restos de suas entranhas. O
falecido pescador, agora, passava a morte a maldiçoar os viventes.”
Terra Sonâmbula é a voz da narrativa oral africana
tornada escrita: árvores fabulosas, aves mágicas que falam, fazedores de rios, espíritos de mortos
desconsolados atormentando os viventes, as maldições derramadas nas vidas difíceis
dos homens. E, tornando essas vidas ainda mais invividas, a guerra e a fome, os
políticos buscando vantagem – os administraidores,
como diz Carolinda – , o clima de caos e convulsão social: um país acabado
de nascer e já comparado às baleias que vêm agonizar na praia, assinala Kindzu
no primeiro caderno.
Na
narrativa primeira e nas que dela saem estão presentes símbolos de vidas bloqueadas:
Tuahir e Muidinga acolhem-se a um machimbombo queimado que nunca se fará à
estrada; Farida vive num navio encalhado, ao lado de uma ilha com um farol sem
luz.
A
guerra aponta ao povo o destino da animalização: é ver Junhito, irmão de Kindzu,
transformado em galo. “Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação”,
diz o feiticeiro na arenga apocalíptica do último caderno. Porém, é pela sua
voz de ancestralidade mágica que chega uma mensagem de esperança:
“(…) surgirão os doces acordes de uma
canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a
lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa
voz nos dará a força de um novo
princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes
abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isto se fará se
formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos
morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta
guerra nos converteu.”
Finalmente,
Junhito desbicha-se; Kindzu é imaginariamente
um guerreiro naparama, os braços cobertos de lenços e uma zagaia nas mãos. Gaspar,
procurado e nunca encontrado, é o guardião das histórias quando o seu narrador
se apaga. No primeiro caderno, fica dito que seria assim: “Acendo a estória, me
apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” Esta é
a condição do contador de histórias perante os seus ouvintes.
Para
além de um país que nasce e de uma guerra que recusa morrer, para além do
sofrimento dos homens, há em Terra
Sonâmbula o poder desmedido do sonho e da crença, o amor dos ancestrais
valores que os sistemas políticos, sempre efémeros, não conseguem matar; e a
presença dessa luz forte – talvez como a
do farol que Virgínia queria construir em terra, longe do mar, em lugar
aparentemente indevido – que é a que emana da narrativa e dos seus narradores. Uma
luz que redime e melhora, sempre abrigada no coração dos homens. Narrar e ouvir
narrar é como sonhar, e o sonho, diz-se no livro, é o olho da vida.
(= Lido na sessão de 28/2/2014 =)
3 comentários:
Muito bom texto Manel. E eu, que também sonâmbula ando, fui desperta para acabar de ler as histórias deste livro e procurar para além da guerra e do sofrimento.
Obrigada pela partilha, Manuel. A tua intervenção foi o momento da noite. Um momento abemfalado :)
Gostei de ouvir, gostei de ler. Obrigada
Enviar um comentário