24 maio 2011

José Régio, FRATERNIDADE




FRATERNIDADE

Um dia, um meu irmão que tinha o que eu não tenho
— A vidente ignorância a que só Deus assiste—
Pegou dum grande, rude, grosso lenho,
Matéria bruta e viva, que resiste...

Vencendo-a, afeiçoou as fibras angulosas
A umas formas viris, tão puras como cruas;
Pôs-lhe um trapo nas partes vergonhosas;
Estiraçou-lhe os pés e as pernas nuas.

Dos ramos laterais do lenho primitivo,
A navalhadas, fez os braços que faltavam,
Toscos, mas com, lá dentro, sangue vivo,
E tumefactas mãos que se espalmavam.

E enfim, todo a tremer de amor e de receio,
Noutro bloco, moldou uma cabeça aflita,
Com pálpebras descidas até meio
E a boca a abrir num grito que não grita.

Tudo o que de cruel a vida lhe ensinara,
Mais o que tinha em si maior do que o destino,
Sem mesmo ele o saber, ganhou voz clara
No longo rosto esquálido e divino.

Dois troncos pôs em cruz e assim fez o madeiro;
Sobre eles ajuntou e cravejou tudo isto;
E aquilo que ontem era um castanheiro
Num altar figurou de Jesus Cristo

O tempo foi rolando... E os centos de anos viram
Rojar-se a multidão ante esse lenho, — santo
Só porque, sob a graça, o esculpiram
Umas humanas mãos em pó há tanto!

Quantas profanações, depois, não arrastaram
Por lôbregos saguões, recantos, corredores,
Esses membros que bispos incensaram,
Essa cabeça de Senhor das Dores!

Até que um dia, entrando a um sótão miserável,
Vou encontrar no chão, entre sucata, aquela
Mutilada cabeça inda admirável,
Por mutilada e vil não menos bela.

Juntei, juntei, tremendo, os restos de Jesus:
A sagrada cabeça, o busto carunchoso
E os braços despregados já da cruz,
Com mãos roídas como as dum leproso.

Mandei, mandei buscar essas mutilações!
Com elas me fechei no meu buraco, e o dia
Se me foi entre velhas orações,
Que eu nem sabia que inda sabia...

Às vezes, quando o ar parece que me foge,
Me falta Deus, ou espanta a nossa condição,
Como os fiéis de outrora, a seus pés, hoje,
Dobro o joelho trémulo no chão.

Nem restos de orações lhe rezo! Nada rezo.
Espero no silêncio e na opressão, curvado,
Que Jesus Cristo ao seu madeiro preso,
Tenha dó de mais um crucificado.

Das pálpebras que o tempo enegreceu, o olhar
Que entre elas se não vê, mas se adivinha e sente,
Me banha todo, então, como um luar,
E me diz que há Alguém ali presente.

Não!, já não fico só na minha solidão!
Já me não pesa tanto a minha própria cruz!
Já quase, quase sei (Jesus, perdão!)
Que tenho em ti como um irmão, Jesus.

Meus olhos, que a ruindade interior calcina,
Inundam-se-me então de bruma e de frescura,
E eu choro por nós todos, cuja sina
É sermos a imperfeita criatura...

E a graça que uma vez desceu dos altos céus
Às mãos do pobre artista incógnito, as benzeu,
E as fez fazer dum tosco lenho um Deus
Tão próximo de nós como do céu,

A pouco e pouco vem sobre a minha cabeça
(Como o calor do sol que enxuga os próprios lodos)
De modo que já nada há que me impeça
De ser feliz!, e irmão de tudo e todos.

José Régio – Mas Deus é Grande. Portugália Editora, 1970
Poema FRATERNIDADE, p. 95-99

9 comentários:

Manuel José disse...

Régio, no entanto, chama-lhe o Doutrinador extremista ("Confissão dum Homem Religioso").

"Não penseis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer paz, mas a espada. De facto, vim separar o filho do seu pai, a filha da sua mãe, a nora da sogra. E os inimigos do homem serão os seus próprios familiares. Quem ama o pai e a mãe mais do que a Mim não é digno de Mim. Quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim não é digno de Mim. Quem não toma a sua cruz e Me segue não é digno de Mim. Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-la. E quem perde a sua vida por causa de Mim, vai encontrá-la."

Mateus, 10-34,39

Custódia C. disse...

Li o poema, fechei os olhos e ... encontrei-me de novo na Casa de José Régio de frente para essa imagem fantástica.
Estraordinário Maria Amélia, extraordinário mesmo!

Maria Amélia disse...

O 1º subcomentário (?) vai para a Custódia: o que pensaste e sentiste foi precisamente o mesmo que me aconteceu; evocando por acréscimo um momento especial, pois na visita me era dado reconhecer o objecto de um poema que havia cotejado.
O 2º subcomentário (não existe a palavra, pois não?) vai para o Manuel, mas apenas para dizer que aguarde, por favor, uma resposta apropriada.

Custódia C. disse...

Manuel

Eu se fosse a ti preparava-me... medo, muito medo :):):)

Manuel José disse...

Sim, Custódia.
Vem aí um daqueles comentários que depois terás de converter em "post". O pior é o trabalho lá nas arquitecturas, que fica todo atrasado... Logo nesta altura em que tanto precisamos de trabalhar para salvar o país.

Manuel José disse...

Bem, Amélia, o Régio também lhe chama "Amável Mestre". Que este meu comentário sirva para desconto dos meus pecados.
Curiosamente, o Eça escreveu um conto com o título "Outro Amável Milagre" (variante d' "Um Suave Milagre").
Quanto ao trabalho se atrasar, por favor não leves a sério - eu sei que não brincas em serviço.

Maria Amélia disse...

Muito bem: obrigada a ambos, Manuel e Custódia, pelo desafio declarado, desafio que, evidentemente, me proponho aceitar, mas em forma; quer dizer, faltam-me bagagens, queria voltar a ter comigo o Régio confessional, e por isso já o encomendei.
Durante a próxima semana, aqui voltarei, quer dizer, vou tentar fazer alguma coisa que possa eu própria publicar, ok?
Manuel: não consigo vislumbrar, do que conheço de ti, que precises de descontos a pecados, nem a brincar!
Fiquem ambos com as vossas consciências impecáveis e luminosas!
Já agora: para alívio, sim, da minha consciência, deixa-me dizer-te, Manuel, que tens razão em tudo o que respeita ao Régio; o que pretendo é levar um pouco mais longe uma certa análise. Qto ao Suave Milagre, é mesmo uma versão mais pobre e resumida, na minha opinião. Entrava aí talvez alguma discussão acerca da religiosidade deste autor...e da sua geração.

Diana disse...

Ainda na semana Passada fui visitar a casa do José Régio em Portalegre. Tem lá o Cristo que inspirou este poema!

Maria Amélia disse...

É isso mesmo. Foi precisamente numa visita de grupo à Casa José Régio que nos demos conta, perante este Cristo tão sofrido quanto expressivo, de que correspondia ao conhecido poema... Daí a transcrição--em memória, para que viva.