03 maio 2011

"NADA MAIS E O CIÚME" DE GIL DUARTE - UMA LEITURA

Um romance de estreia é a oportunidade para avaliar as potencialidades dum escritor, a forma ágil ou menos ágil como passeia pelo bosque da ficção (Umberto Eco) e sentir o texto como possível programa de acção para trabalhos futuros.
Isto acontece com sinal positivo em “Nada Mais e o Ciúme” de Gil Duarte*, “um romance” – e não simplesmente “romance” – , tal como surge na capa a designação do género narrativo, o que desde logo sugere, pela anteposição do determinante, um trabalho de ensaio e experimentação.
No arco dum dia – a unidade de tempo da poética aristotélica –, entre o velório do corpo do professor E.C. Bernardo e o episódio tragicómico em que as suas cinzas são lançadas da janela dum prédio sobre os estendais de roupa dos vizinhos, um narrador homodiegético de nome Pedro rememora a história do professor, da mulher Luz Botelho e do filho Virgílio Bernardo, seu companheiro dos tempos do liceu e objecto de uma persistente paixão pessoal. Falando desta tríade familiar, Pedro fala sobretudo de si e do caminho que percorre até se tornar escritor. E, naturalmente, fala também do ciúme, o leitmotiv do romance.
Diz Francesco Alberoni que o ciúme se manifesta geralmente de três formas: a primeira, quando serve para alimentar o erotismo em relação à pessoa amada; a segunda, quando apesar do sofrimento que causa, ele é tolerável pelo ciumento; finalmente, na terceira forma, o ciúme é insuportável e provoca a ruptura, por vezes violenta, entre o amador e o ser amado. A primeira destas formas aplicar-se-á ao caso de Pedro com Virgílio, ainda que o erotismo de que aqui se fala seja algo de difuso e pouco transparente; a segunda ao caso de E.C. Bernardo com Dulce; e a terceira será o ciúme de Virgílio em relação a Dulce. Há também o ciúme que Leonor despertava em Virgílio, que não era o vulgarmente sentido pelos irmãos mais velhos na disputa do afecto dos pais, mas um ciúme abrangente, capaz de entender como ameaça todos os que se relacionavam com a sua irmã.
Sentimento ambivalente em que convergem muitas vezes o sofrimento e a agressividade, o ciúme pode manifestar-se de forma mais lata, como na competição por um lugar ou no esforço para preservar um qualquer bem que se possua. Foi o ciúme que fez de Pedro outro homem, que fez dele um escritor. Assim, Virgílio assume uma dupla importância na sua vida: desencadeador da sua condição de homossexual e força que o impeliu para a arte da escrita.
Partindo para uma analogia com os géneros do teatro clássico, E. C. Bernardo e Luz Botelho deixam por vezes a impressão de serem personagens de tragicomédia, narrativamente coerentes segundo os cânones do género, e só Virgílio se revela como figura trágica pura. Luz Botelho, poeta ou poetisa, com as suas prosaicas flatulências baixas, o seu espírito prático em dissonância com o mistério da poesia, pouco ou nada interpela o leitor; E. C. Bernardo, professor, pai sem vocação e marido não amado, tomado pela ideia de demonstrar matematicamente a ausência de movimento – qual Zenão de Eleia com os seus quatro paradoxos – , é uma personagem à beira do risível. Desta família a três, Virgílio é a única figura que infunde respeito e piedade. O diálogo que trava com Pedro é o que se produz entre o espírito e a alma: Pedro será a alma, Virgílio o espírito.
Uma palavra para Dulce, amante sucessiva do professor e do seu filho, em cuja personalidade é possível ver a projecção da Leonor que não vingou na narrativa. Leonor era uma menina birrenta e mal comportada, e Dulce é igualmente caracterizada por um mau comportamento, por uma mobilidade erótica e aventureira que fazia dela, segundo Luz Botelho, uma mulher em quem não se podia confiar. Devo ter sido o único ser vivo que ela nunca se deu ao trabalho de seduzir – diz o narrador. Mas Dulce não só seduzia, como se deixava seduzir, por vezes até em situações inesperadas e por pessoas aparentemente desinteressantes, como parece ter acontecido com o detective que investigava o desaparecimento de Virgílio e com o bizarro professor Ivo Moita. E. C. Bernardo, no entanto, viu nela uma pessoa extraordinária.
De assinalar também os topoi da viagem e da busca (ou demanda), tão caros à literatura, protagonizados por E. C. Bernardo e o narrador na desesperada procura de Virgílio, de certa forma uma representação metonímica da procura empreendida por Pedro em relação ao seu próprio eu.
“Nada Mais e o Ciúme” é uma obra aberta (de novo Umberto Eco) a partir da qual podem ser feitas várias leituras. Esta, centrada nas personagens nucleares da narrativa, é, por mais paradoxal que possa parecer, uma leitura possível.
O leitor, segundo a teoria da recepção, “rescreve” sempre os textos que lê porque eles o convidam a dar-lhes sentido, tornando-se desta forma uma espécie de co-autor dos mesmos. A verdade, porém, é que isto não acontece com todos os textos, mas apenas com aqueles que verdadeiramente o interessam.


* Gil Duarte é pseudónimo de José Pacheco, seguidor deste blogue.

6 comentários:

Custódia C. disse...

Irei espreitá-lo na próxima visita a uma livraria...

josépacheco disse...

Muito obrigado, Manuel Nunes, pela excelente e finíssima leitura que faz a partir das personagens. Eu diria que o «tragicómico» nem sempre é uma indistição entre tragédia e comédia, mas pode ser lido como a tragédia que se mascara sob o falsamente risível. Olharia assim, por exemplo, para Luz Botelho e sobretudo para o Professor. Mas tem razão, só Virgílio é uma personagem trágica em estado quimicamente puro.

Maria Amélia disse...

Ó pessoal: não tenho agora tempo para muitos comentários, porque também tenho de ir depressinha ao dicionário (Manuel!), mas estou em querer ler o referente e mais--gostaria de conhecer o feliz autor (ainda por cima parece simpático!), podendo eventualmente vir a estar connosco na biblioteca, não?

josépacheco disse...

Muito obrigado pelo acolhimento, pela simpatia (noeadamente de ma acharem simpático), pelo humor e pelo interesse. Terei todo o gosto em conhecê-las pessoalmente - vivo, by the way, mesmo ao lado da biblioteca. Até breve?

Cristina Leimart disse...

Bela leitura, Manuel! E bela capa, a do romance, muito equilibrada, com uma dignidade bonita.
Parabéns também ao autor - imagino que seja uma grande alegria as nossas palavras finalmente impressas.
Cristina

Maria Amélia disse...

Ora se mora por perto, é aparecer! Não haverá por aí um convite pendente para este nosso amável vizinho? Ó srs coordenadores, que sois uns 3 ou 4...