(Foto Bruno Simão)
“Capítulo
4 - O fim de um voo
O
gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando
acerca de como se estava bem ali, recebendo os cálidos raios de barriga para
cima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.
No
preciso momento em que rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe
aquecesse o lombo ouviu o zumbido provocado por um objeto voador que não foi
capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade. Atento, deu um
salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para um lado
para se esquivar à gaivota que caiu na varanda.
Era
uma ave muito suja. Tinha todo o corpo impregnado de uma substância escura e
malcheirosa.
Zorbas
aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se de pé arrastando as asas.
-Não
foi uma aterragem muito elegante - miou.
-Desculpa.
Não pude evitar -reconheceu a gaivota.
-Olha
lá, tens um aspeto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal que
cheiras! -miou Zorbas.
-Fui
apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer -
grasnou a gaivota num queixume.
-Morrer?
Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque é que não voas até ao
jardim zoológico? Não é longe daqui e lá há veterinários que te poderão ajudar
-miou Zorbas.
-Não
posso. Foi o meu voo final - grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e
fechou os olhos.
-Não
morras! Descansa um pouco e verás que recuperas. Tens fome? Trago -te um pouco
da minha comida, mas não morras - pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida
gaivota.
Vencendo
a repugnância, o gato lambeu-lhe a cabeça. Aquela substância que a cobria, além
do mais, sabia horrivelmente. Ao passar-lhe a língua pelo pescoço notou que a
respiração da ave se tornava cada vez mais fraca.
-Olha,
amiga, quero ajudar-te, mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou
pedir conselho sobre o que se deve fazer com uma gaivota doente - miou Zorbas,
preparando-se para trepar ao telhado.
Ia
a afastar-se na direção do castanheiro quando ouviu a gaivota a chamá-lo.
-Queres
que te deixe um pouco da minha comida? - sugeriu ele algo aliviado.
-Vou
pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato,
vê-se que és um animal bom e de nobres sentimentos. Por isso, vou pedir -te que
me faças três promessas. Fazes? – grasnou, sacudindo desajeitadamente as patas
numa tentativa falhada de se pôr de pé.
Zorbas
pensou que a pobre gaivota estava a delirar e que com um pássaro em estado tão
lastimoso ninguém podia deixar de ser generoso.
-Prometo-te
o que quiseres. Mas agora descansa – miou ele compassivo.
-Não
tenho tempo para descansar. Promete-me que não comes o ovo - grasnou ela
abrindo os olhos.
-Prometo
que não te como o ovo - repetiu Zorbas.
-Promete-me
que cuidas dele até que nasça a gaivotinha.
-Prometo
que cuido do ovo até nascer a gaivotinha.
-Promete-me
que a ensinas a voar - grasnou ela fitando o gato nos olhos.
Então
Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar, como estava
completamente louca.
-Prometo
ensiná-la a voar. E agora descansa, que vou em busca de auxílio – miou Zorbas
trepando de um salto para o telhado.
Kengah
olhou para o céu, agradeceu a todos os bons ventos que a haviam acompanhado e,
justamente ao exalar o último suspiro, um pequeno ovo branco com pintinhas
azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo….”
In
“História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”, de Luís Sepúlveda
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