Escrevendo em louvor de Alípio Abranhos,
Z. Zagalo tem páginas de utilidade e rigorosa actualidade.
Hoje retomei a leitura naquela parte do
livro em que o «varão eminente» está a praticar as técnicas forenses no
escritório do famoso jurista Dr. Vaz Correia. Na sua douta explanação, o
biógrafo traz à colação a histórica revolta da Maria da Fonte, iniciada no
Minho em Março-Abril de 1846 e depois alargada, num crescendo da crise social,
a outras regiões do país.
Isto deu-me a oportunidade de ir
rever os manuais da universidade, nomeadamente a História de Portugal Contemporâneo – Político e Institucional, de
João Medina, na edição da Universidade Aberta.
É bom sinal que um livro de ficção
nos leve a descobrir ou relembrar certos temas da nossa história. A boa ficção
é uma leitura séria e na maioria dos casos altamente científica.
A revolta da Maria da Fonte fez-se
contra o governo ditatorial de António Bernardo de Costa Cabral (1803-1889), um
governo que, apesar de ter saído de um golpe de Estado e restabelecido um
regime constitucional conservador (a Carta), empreendeu medidas progressistas
como a proibição dos enterros nas igrejas e recintos anexos. A reacção popular de
cariz religioso a esta medida sanitária (via-se nela o afastamento dos defuntos
da asa protectora da Igreja) foi seguida de grandes desacatos com assaltos de camponeses
às sedes da administração civil, a arquivos da Fazenda e quartéis, tendo os
revoltosos tomado as cidades de Braga e Guimarães.
Diz João Medina: «A Maria da Fonte
foi uma reacção sobretudo provinciana, camponesa e agrária contra as reformas
em geral do Liberalismo (legislações de Mouzinho, Joaquim A. de Aguiar e Silva
Carvalho) e contra alguns aspectos mais modernos da política de fomento
material empreendida pela ditadura dos Cabrais e, nesta medida, contra a própria
modernização económico-social iniciada desde 1842.»
Claro que esta explosão social e a coligação
negativa – como hoje se diz – que se estabeleceu (cartistas anticabralistas,
setembristas e até miguelistas) acabou por determinar a destituição de Costa
Cabral pela rainha D. Maria II.
Mas voltemos a Z. Zagalo e a Alípio
Abranhos (não sei se repararam, mas é como ir de AA a ZZ, um vasto campo, o que
talvez não seja inocente…). Era ideia do ilustre pensador político que o regime
constitucional democrático deveria prevalecer sobre o autoritário, que essa seria a melhor forma de levar as ovelhas ao redil. Demos a palavra a Z. Zagalo: «O
Conde d´Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma
nova política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural
em que a sua fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o
governo nada perdia do seu poder discricionário – mas que apenas o disfarçava.
Em vez de bater uma forte patada no país, clamando com força: – Para aqui! Eu
quero! – os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e
toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: – Por aqui,
se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!»
Não sei o que estão os nossos
leitores a pensar, mas, se calhar, estão a pensar o mesmo que eu.
4 comentários:
Em lobos, com pele de cordeiro? :)
Também, mas ainda mais.
No fundo, as fragilidades do próprio sistema democrático. Somos inteiramente livres quando decidimos? Gostamos de acreditar que sim, mas veja-se o que diz Z.Zagalo. O caciquismo não é só daquele tempo. Hoje há mais esclarecimento, é certo, mas não há muitos anos que um candidato a autarca num município do norte dava electrodomésticos da sua loja para captar votos. E depois, também há quem entregue o seu voto por promessas que vêm a revelar-se irrealizáveis. Uma máxima de um candidato a PR do pós-25/4: «Muitos prometem, X. cumpre». Lá está.
Esta obra do Eça, inacabada e nunca publicada em vida, é muito acutilante. Eça e os seus companheiros de geração, altamente instruídos e idealistas, movidos pelos nascentes ideais socialistas, são altamente críticos do sistema da monarquia constitucional e do rotativismo partidário ou até da índole e capacidades dos políticos da época e dos seus interesses de grupo. Expõe , de facto, as fragilidades do regime liberal e futuramento democrático e pelas suas brechas infiltrar-se-ão regimes que a título da ordem, família e bem comum cativaram as liberdades dolorosamente alcançadas no séc. XIX.E continuam ainda hoje, sob a capa do populismo, do dizer e dar ao povo o que ele entende e quer ouvir, da inefável e clássica defesa da nação.
Sim, Paula, mas há uma diferença entre o Eça do Cenáculo e das Conferências do Casino e o dos Vencidos da Vida. O arrasamento da classe política é recorrente nos seus romances: ver no final d´”O Crime do Padre Amaro” os comentários do Conde de Ribamar a propósito da insurreição de Paris com os elogios à tranquilidade existente em Portugal, assim como n´”Os Maias” a mediocridade do Conde de Gouvarinho. Condes, tudo condes como o Alípio Abranhos. Só que o socialismo da juventude foi afrouxando com a idade e as desilusões políticas. Em “A Cidade e as Serras” é já caricatura: ver o discurso de Zé Fernandes nos altos de Montmartre contra a desarmonia social e o triunfo da burguesia, logo afogado em vinho gelado num pavilhão do Bois; e o arroubo de filosofia social de Jacinto ao pretender alterar as miseráveis condições de vida dos seus servidores de Tormes a que responde o pragmatismo respeitoso de Silvério, o procurador, dizendo que se tal se fizesse como o patrão pretendia seria uma revolução. A desilusão com os resultados do Constitucionalismo levaram-no ao diletantismo político (os Vencidos como «grupo jantante») e a admitir literariamente a falência da nação, a perda total da sua independência, como no conto “A Catástrofe”.
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