Sessões de autógrafos: a de ontem e a antiga
Blogue da Comunidade de Leitores da Biblioteca de S. Domingos de Rana - Cascais - Portugal
26 fevereiro 2017
PÓS-SESSÃO, ONTEM, NO CCB
«O teu amor quando palpita / verdade seja dita / faz-me atrasar os ponteiros /como a ostra esconde a pérola / aos viveiros.» - Sérgio Godinho cantado por Cristina Branco.
25 fevereiro 2017
Três dezenas de leitores...
... é o número médio que andamos a registar nas nossas sessões mensais. Hoje marcaram presença 29 leitores. Tendo presente realidades de outras comunidades de leitores, constato que a nossa está bem cimentada, com um grupo coeso e cada vez mais interessado nas leituras propostas. Reunir nesta Biblioteca, uma vez por mês numa tarde de Sábado, 3 dezenas de pessoas que vão pelo prazer de falar sobre um livro (e tudo o mais que daí advém), começa a ser digno de registo. A magia dos livros tem destas coisas!
Hoje, Agualusa levou-nos pelos caminhos da construção de memórias, de passados imaginados tornados reais. Pelo caminho veio Eça, Borges, a lusofonia, o riso das osgas asiáticas e os meandros negros da política, entres outros. Para alguns, com reais vivências africanas, as memórias que vieram à luz, foram emotivamente partilhadas com os demais. Foi mais uma sessão, forte na partilha do conhecimento em que, a diferença das opiniões não divide, mas une e enriquece. Que venha a próxima!
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"O Vendedor de Passados",
A Comunidade,
José Eduardo Agualusa
17 fevereiro 2017
"O VENDEDOR DE PASSADOS", de José Eduardo Agualusa
--- Transcrevo a introdução de um trabalho
académico feito por este escrevente no ano lectivo de 2007/2008, ano curricular
do mestrado, seminário de Literaturas de Língua Portuguesa:
INTRODUÇÃO
Ao pretendermos estudar o romance O Vendedor de Passados, de José Eduardo
Agualusa, não podemos deixar de ter em consideração a visão dicotómica de Pires
Laranjeira em relação à actualidade literária de Angola:
«No
pós-independência, há na literatura um discurso ideológico do poder e outro do
contra-poder. O discurso do poder procura legitimá-lo pelo poder do enraizamento
e da nacionalidade. O discurso do contra-poder não discute a nacionalidade, mas
pode discutir o modo como ela se legitimou, recuando às origens. Ou pode
simplesmente silenciá~la, enquanto tema, ou secundarizá-la.»
José Eduardo Agualusa nasceu na cidade do Huambo
(Nova Lisboa na toponímia colonial) em 1960 e é considerado um escritor da
diáspora. De facto, já residiu em Olinda, Brasil, país aonde se desloca com
frequência e onde desenvolve, ao que julgamos saber, projectos editoriais.
Estanciou em Berlim, onde escreveu, ao abrigo de uma bolsa de criação literária
da Deutscher Akademischer Austausschdienst, o romance O Ano em que Zumbi Tomou o Rio (2002). Reside actualmente em Lisboa.
Perpassa pela sua obra, logo desde o primeiro
romance, A Conjura (1989), e, em
especial , em Nacão Crioula (1998) -
onde se revela a “correspondência secreta” de Fradique Mendes e a surpreendente
adaptação daquela personagem queirosiana ao mundo tropical – a afirmação dos
valores da miscigenação, não apenas rácica mas, sobretudo, cultural, o que o
leva a desenvolver um projecto literário onde já se apontaram indícios das
teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre ou, no mínimo, as marcas da
crioulidade que Mário António Fernandes sustentou na sua produção ensaística.
Pesará nesta inclinação intelectual a origem do
escritor, nascido em Angola mas filho de pai com raízes portuguesas e de mãe
com ascendência brasileira. A própria repartição espacial da sua vida e as
iniciativas que desenvolve no triângulo Angola-Portugal-Brasil, contribuem para
a imagem de um escritor dividido pelos espaços da lusofonia, essa comunidade de
falantes em que os Portugueses tendem a ver o que sobrou dos estilhaços do
Império e que Eduardo Lourenço já
apresentou como uma miragem cultural ou a imagem actual do nosso mapa
cor-de-rosa. É, de resto, esse território mítico desfeito pelo ultimato inglês
de 1890 que, de certa forma, surge no seu último livro, As Mulheres de Meu Pai, uma viagem de Angola à contracosta,
realizada desta feita pelo litoral africano, de Luanda à Ilha de Moçambique.
Em O
Vendedor de Passados opera-se uma dessacralização da terra natal e da sua
História, tocando-se em complexos
motivos como a invenção da memória ou o vazio dela na emergente nação
angolense. O livro é marcado por uma epígrafe de Jorge Luís Borges e um
narrador que nos atreveríamos a chamar borgiano, embora o modelo não se possa
considerar original.
Assim, o nosso trabalho sobre a obra e o autor
escolhidos, desenvolver-se-á segundo as seguintes linhas temáticas:
1. O mito da nação crioula.
2. Nação angolense e valores identitários.
3. O 27 de Maio de 1977.
4. Queirosianismo e ironia queirosiana.
5. Processos narrativos: as sombras de Jorge Luís
Borges e Lygia Fagundes Teles.
--- Aqui
fica a introdução, há mais 10 páginas. Desculpem qualquer coisinha, ó leitores, que
isto é trabalho de simples escolar. A nota até não foi má.
04 fevereiro 2017
O Berço
"...À noite, no quarto de engomar, a minha criada Gervásia sentou-me no chão, embrulhado num saiote. De quando em quando, rangiam no corredor as botas do João, guarda da alfândega, que andava a defumar com alfazema. A cozinheira trouxe-me uma fatia de pão-de-ló. Adormeci; e logo achei-me a caminhar à beira de um rio claro, onde os choupos, já muito velhos, pareciam ter uma alma e suspiravam; e ao meu lado ia andando um homem nu, com duas chagas nos pés, e duas chagas nas mãos, que era Jesus, Nosso Senhor.
Passados dias, acordaram-me, numa madrugada em que a janela do meu quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um prenúncio de cousa santa. Ao lado da cama, um sujeito, risonho e gordo, fazia-me cócegas nos pés com ternura e chamava-me brejeirote. A Gervásia disse-me que era o Senhor Matias, que me ia levar para muito longe, para casa da tia Patrocínio; e o Senhor Matias, com a sua pitada suspensa, olhava espantado para as meias rotas que me calçara a Gervásia. Embrulharam-me no xale-manta cinzento do papá; o João, guarda da alfândega, trouxe-me ao colo até à porta da rua, onde estava uma liteira com cortinas de oleado..."
in "A Relíquia" de Eça de Queirós
"...O mulato Fausto Bendito Ventura, alfarrabista, filho e neto de alfarrabistas, encontrou numa manhã de domingo um caixote à porta de casa. Lá dentro, estendido sobre vários exemplares d’ A Relíquia de Eça de Queirós, estava uma criaturinha nua, muito magra e deslavada, com um cabelo de espuma incandescente, e um límpido sorriso de triunfo. Viúvo, sem filhos, o alfarrabista recolheu o menino, criou-o e educou-o, seguro de que um desígnio superior armara a improvável trama. Guardou o caixote, bem como os respectivos livros. O albino falou-me disto com orgulho: – Eça foi o meu primeiro berço. ..."
in "O Vendedor de Passados" de José Eduardo Augualusa
01 fevereiro 2017
“O Vendedor de Passados” de José Eduardo Agualusa, 25 de Fevereiro às 15h00
A abrir:
“Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o
corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas
altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as
fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espectáculo
sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira
vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir
enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um
cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.
– Ai, não posso crer! Tu ris?!
Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo mas não movi um músculo.
O albino tirou os óculos escuros, guardou-os no bolso interior do casaco,
despiu o casaco, lentamente, melancolicamente, e pendurou-o com cuidado nas
costas de uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato do velho gira-discos.
“Acalanto para um Rio”, de Dora, a Cigarra, cantora brasileira que, suponho,
conheceu alguma notoriedade nos anos setenta. Suponho isto a julgar pela capa
do disco. É o desenho de uma mulher em biquíni, negra, bonita, com umas largas
asas de borboleta presas às costas. “Dora, a Cigarra – Acalanto para um Rio – O Grande Sucesso do
Momento”. A voz dela arde no ar. Nas últimas semanas tem sido esta a banda
sonora do crepúsculo…”
“O Vendedor de Passados”
de José Eduardo Agualusa
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25 janeiro 2017
PALAVRAS PARA QUE VOS QUERO
A propósito de Luuanda e do papagaio Jacó, vede isto, ó leitores, publicado pelo escrevente há 11 anos, era ainda uma criança:
http://sonhocomandavida.blogspot.pt/search?q=Jac%C3%B3
http://sonhocomandavida.blogspot.pt/search?q=Jac%C3%B3
03 janeiro 2017
"Luuanda" de José Luandino Vieira - 28 de Janeiro às 15h00
A abrir
Tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todos os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas arrumadas à toa. Assim, quando vavó adiantou sentir esses calores muito quentes e os ventos a não querer mais soprar como antigamente, os vizinhos ouviram-lhe resmungar talvez nem dois dias iam passar sem a chuva sair. Ora a manhã desse dia nasceu com as nuvens brancas — mangonheiras no princípio; negras e malucas depois — a trepar em cima do musseque. E toda a gente deu razão em vavó Xíxi: ela tinha avisado, antes de sair embora na Baixa, a água ia vir mesmo.
A chuva saiu duas vezes, nessa manhã.
in Luuanda de José Luandino Vieira
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21 dezembro 2016
É tempo de Balanço ....
12 meses, 12 livros e tanto, mas tanto mais…
Em Janeiro reunimos no restaurante "Flor do Bairro", fruto da alteração do dia e hora das nossas sessões. Tivemos que deixar o intimismo das sessões nocturnas de sexta-feira, numa das salas repletas de livros da biblioteca e passar para os sábados à tarde na sala multiusos, com a “nudez e frieza” que lhe está associada. Perdemos com a troca e ainda não estamos totalmente habituados ao novo espaço. Afinal foram 10 anos ombro a ombro com aquilo que de mais precioso nos leva ali: os livros!
No primeiro trimestre do ano chegou o ciclo “Neo-realismo na Literatura Portuguesa” e claro que não podiam faltar “Gaibéus”, de Alves Redol, “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes e “Casa na Duna”, de Carlos de Oliveira. Imbuídos do espírito, não deixámos passar a oportunidade e rumámos a Vila Franca de Xira e Alhandra à procura dos “filhos dos homens que nunca foram meninos”…
Para o segundo trimestre decidimo-nos pela “Literatura de Expressão Anglófona “ e dissecámos nos 3 meses “O Adeus às Armas”, de Ernest Hemingway, “Boneca de Luxo”, de Truman Capote e “O Fio da Navalha" de Somerset Maugham.
Foi também um período intenso de actividades. Em Abril (e num dia de anos especial), fomos comemorar Eça de Queiroz e o 141º aniversário da publicação de O Crime do Padre Amaro, numa expedição a Leiria em torno de “A Rota d´O Crime”, alusiva ao entrecho do conhecido romance.
Entretanto, alguns dos nossos marcaram presença em duas sessões do ciclo de conversas “O escritor no seu labirinto”, na nossa Biblioteca, em Maio com Mário Carvalho e em Julho com Mário Zambujal.
Junho foi um daqueles meses que fica para a história da Comunidade: aconteceu a tão desejada visita a La Mancha. Cervantes, El Greco, D. Quixote e Sancho, tornaram-se finalmente realidade para os membros desta comunidade que há cerca de 2 anos, andam na demanda das aventuras do Cavaleiro da “triste figura”.
Com o Verão
chegaram os Russos (“Lolita”, de Vladimir Nabokov, “Margarita e o Mestre”, de
Mikhail Bulgakov e “A Morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoi), as altas
temperaturas e também muita animação. Começámos com uma extraordinária “viagem”
no Convento de Cristo em Tomar, com direito a cânticos à capela, teatro ambulante
e ceia medieval; “Reviver o passado em Almada”, levou o grupo à
margem sul numa digressão saudosista mas também renovadora; o habitual
“Concerto de Órgãos” no Convento de Mafra (este ano excepcionalmente bom!); um
memorável passeio pelas memórias citadinas da Paula, que nos levou do Martim
Moniz à Graça; um programa nocturno no museu da cidade, com uma sessão de cinema
ao ar livre “Les amants du pont neuf”, onde a bela Binoche não desiludiu, pese
embora o “disfarce” da personagem. A encerrar o Verão, vieram os fabulosos
concertos das sinfonias de Beethoven, no Terreiro do Paço. A música clássica
mesmo ali ao alcance dos dedos.
Para o último trimestre do ano guardámos os Brasileiros (“Budapeste”, de Chico Buarque, “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos e “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector) e terminámos com o já habitual jantar de convívio natalício, como manda a tradição.
Pelo meio aconteceram tantas
outras coisas. O Teatro de S. Carlos já é praticamente uma tradição anual, com
o seu fabuloso “Festival ao Largo”, a ganhar cada vez mais adeptos. Em Lisboa,
muitos foram os pretextos que nos levaram à descoberta da cidade, não só pelas
caminhadas no coração dos seus bairros, mas também na adesão às muitas
iniciativas culturais que ali acontecem. Os moinhos de maré de Corroios e
Seixal e a margem sul têm sido também um pólo de atracção para os membros desta
Comunidade, com várias visitas realizadas.
Festas Felizes caros Leitores!
“Tríptico de la Adoración de los Magos” - El Bosco, Hacia 1494. Grisalla, Museu do Prado
12 dezembro 2016
Loreley ...
Ilustração encontrada na net
" ... - Não estou certo de você não sabe. É uma pena que seu apelido seja Lóri, porque seu nome Loreley é mais bonito.Sabe quem era Loreley?
- Era alguém?
- Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema de Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar, já não me lembro mais de detalhes ..."
in "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" de Clarice Lispector.
Fiquei curiosa sobre o poema e procurei-o na internet. Em Português, encontrei apenas esta tradução de um blogger brasileiro, R. S. Kahlmeyer-Mertens.
Eu não sei o sentido
De tristeza tão assaz
Por um conto de tempo ido
Que significado a mim não traz.
O ar fresco e profundo,
O Reno manso a fluir;
Das montanhas cintila o cimo;
Da tarde de sol, o luzir.
A mais bela moça sentada
Em maravilhoso lugar,
Seu cabelo dourado penteia,
Com o ouro dos adornos a lampejar.
Ela alisa louras cãs caídas aos ombros
E canta uma canção que alicia;
Há um assombro
Em sua poderosa melodia.
O navegante no pequeno navio,
Capturado por selvagem dor,
Não divisa o recife rochoso,
Só visa à face superior.
Creio, as ondas hão de arrastar
Ao fundo, navegante e barco
Eis o que, com seu cantar,
Loreley leva a ato.
06 dezembro 2016
Plano de leituras 2017
The House Maid, Paxton, William McGregor 1910
SAGRADA ESPERANÇA (Literatura angolana) JAN-MAR
28
Jan - “Luuanda”, de Luandino Vieira
25
Fev - “O Vendedor de Passados”, de José Eduardo Agualusa
25
Mar - “Quantas Madrugadas Tem a Noite”, de Ondjaki
EROS
PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE ABRIL-JUN
29
Abr - “Ronda das Mil Belas em Frol”, de Mário de Carvalho
27
Mai - “Novelas Eróticas”, de Manuel Teixeira-Gomes
24
Jun - “Elogio da Madrasta”, de Mário Vargas Llosa
CONTEMPORÂNEOS
PORTUGUESES JUL-SET
29
Jul - “Cântico Final”, de Vergílio Ferreira
26
Ago - “O Meu Mundo Não é Deste Reino”, de João de Melo
30
Set - “Adoecer”, de Hélia Correia
ELEMENTAR,
MEU CARO WATSON (policial) OUT-DEZ
28
Out - “Aventuras de Sherlock Holmes”, de Arthur Connan Doyle
25
Nov - “Um Crime Capital”, de Francisco José Viegas
30
Dez – “Maigret nas Termas”, de George Simenon
02 dezembro 2016
"Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres" de Clarice Lispector - 17 de Dezembro às 15h00
Não a abrir, mas um pouco mais adiante:
" ... — usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais: riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar, e
agora pronta, vestida, o mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida de ir ou não ao encontro com Ulisses — pronta, de braços pendentes, pensativa, iria ou não ao encontro? ..."
in "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres" de Clarice Lispector
24 novembro 2016
LEITURAS DE 2017
Para que saibam, ó incautos leitores, o plano de leituras para 2017 está em gestação. Sugestões de um lado, palpites de outro, e a coisa vai avançando, ainda com lista provisória. Livros de 500 páginas não serão permitidos, os olhos agradecem. Teremos um trimestre dedicado à literatura angolana, outro à literatura erótica... Consta perspectivarem-se algumas ausências à sessão do próximo sábado: importantes colóquios, deveres profissionais e outras razões atendíveis. Quem faltar que depois não se queixe. Além de perder a discussão de um belo livro - Vidas Secas, de Graciliano Ramos - vai deixar, talvez, de poder indicar o livro que gostaria de ver discutido no próximo ano. Até sábado!
17 novembro 2016
MORTE E VIDA SEVERINA
Ontem, lendo as primeiras narrativas
de Vidas Secas, lembrei-me de Morte e Vida Severina (1955), de João
Cabral de Melo Neto, texto muito lido e comentado nos meus círculos juvenis de
finais de sessenta. O exemplar aí em cima foi comprado no Centro do Livro
Brasileiro – R. Rodrigues Sampaio, 30-B, Telef. 46470, Lisboa –, conforme etiqueta
colada na última página. “Auto de natal pernambucano”, assim se diz em
subtítulo. Na verdade, a história de um retirante em direcção ao Recife, acossado
pela miséria e a fome – uma “vida seca”.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
08 novembro 2016
"Vidas Secas" de Graciliano Ramos - 26 de Novembro às 15h00
A abrir:
" NA PLANICIE avermelhada os juazeiros
alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia
inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam
pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio
seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu
longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para la, devagar, Sinha Vitoria
com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de
folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tiracolo, a
cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda
de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra
Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram,
sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a
bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois
sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe
deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse.
Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos,
zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho
indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas.
O voo negro dos urubus fazia círculos altos
em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou
mata-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém
pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário
- e a obstinação da criança irritava-o. Certamente
esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a
marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho
e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a
lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar
o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas,
cocou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores.
Sinha Vitoria estirou o beiço indicando vagamente uma
direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto.
Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se,
pegou no pulso do menino, que se encolhia, os
joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera
desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o
anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitoria,
pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos
que lhe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos.
Sinha Vitoria aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição
gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E
a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silencio
grande..."
in "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, Capítulo I
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03 outubro 2016
“Budapeste”, de Chico Buarque – 5 de Novembro às 15h00
A abrir
“Devia ser proibido
debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã ao deixar o
metrô, por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à
estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase.
Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me
pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase … havia provavelmente
algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me
fez repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o
fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na
boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que
eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um
joelho, e a piada nem tinha essa graça toda…”
In
“Budapeste” de Chico Buarque
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29 setembro 2016
BEETHOVEN NO TERREIRO DO PAÇO*
Euterpe, musa da música, por FRANÇOIS BOUCHER
Indicação da nossa colega Cristina Mora, estudo crítico das sinfonias de Beethoven:
* Concertos "Integral das Sinfonias de Beethoven", de 28 de Setembro a 1 de Outubro, Orquestra Metropolitana de Lisboa, maestro Pedro Amaral. 21:30 no Terreiro do Paço.
24 setembro 2016
A poesia, na sessão de hoje...
No Hay Muerte ni Principios
No hay muerte ni principios.
Sólo hay un mar donde estuvimos y estaremos,
un mar de peces que son como nosotros,
que vuelan cuando nacen,
que se hunden cuando mueren;
peces voladores
que saltan a la luz
sin llegar a ser ángeles.
Sólo hay un mar
y los alegres saltos de la vida.
Esta curva en el aire,
tan lenta a veces,
sobre ese mar tan codicioso,
no es un arco iris
después de la tormenta,
no es un puente
por donde pueda pasar nadie.
Nuestra vida dibuja
su ascensión y descenso
sobre ese mar humano,
donde la humanidad
realmente vive.
No hay muerte ni principios.
Sólo hay un árbol grande
que sacude sus hojas
para nutrirse de ellas
cuando caigan al suelo.
De Manuel Altolaguirre
Hoje pela mão da Cristina Mora, chegou-nos este poema lindíssimo do Manuel Altolaguirre...
20 setembro 2016
O "Whist"
"PLaying the whist", Boris Kustodiev, 1905
“ …Schwarz não descera. Esperava-o no patamar. Piotr Ivanovitch
percebeu logo o que o retinha: queria combinar o local onde pudessem, mais
tarde, jogar uma partida de whist…
…. Compreendeu que Schwartz pairava acima daquelas coisas, e
não se entregava a impressões acabrunhantes. O simples aspecto dele dizia que o
incidente do funeral de Ivan Ilitch não teria força bastante para alterar o a
ordem dos acontecimentos, isto é, nada o impediria de pegar no baralho, à
noite, e embaralhar as cartas, enquanto um criado colocava velas novas na mesa;
em suma, não havia motivos para supor
que as exéquias iriam impedi-los de passar o serão agradavelmente, como sempre
o faziam. E foi, aliás, o que ele sussurrou a Piotr Ivanovitch, convidando-o a
participar numa partidinha em casa de Fiódor Vassílievitch.
Mas,
segundo parece, o destino não traçara para Piotr Ivanovitch, naquela noite, um jogo de
cartas …”
... Na nova cidade, a vida de Ivan Ilitch também se organizou muito agradavelmente: a sociedade que se opunha discretamente ao governador era amável e coesa, o ordenado era mais alto, e iniciou-se no whist, mais uma fonte de prazer, pois era um jogador nato, sabendo enfrentar os riscos com bom humor, raciocinando com prontidão e esperteza as suas jogadas e, por tal, sempre bem feliz nos ganhos..."
... Na nova cidade, a vida de Ivan Ilitch também se organizou muito agradavelmente: a sociedade que se opunha discretamente ao governador era amável e coesa, o ordenado era mais alto, e iniciou-se no whist, mais uma fonte de prazer, pois era um jogador nato, sabendo enfrentar os riscos com bom humor, raciocinando com prontidão e esperteza as suas jogadas e, por tal, sempre bem feliz nos ganhos..."
in "A Morte de Ivan Ilitch" de Leon Tolstoi
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"A Morte de Ivan Ilitch",
Leon Tolstoi
01 setembro 2016
"A Morte de Ivan Ilitch" de Leon Tolstoi - 24 de Setembro às 15h00
A abrir
"No prédio do Tribunal, durante um intervalo
do julgamento do caso Melvinsky, os membros da Corte e o promotor reuniram-se
no gabinete de Ivan Yegorovich Shebek e a conversa recaiu sobre o famoso caso
Krasovsky. Fiodr Vassily Evich insistia em que o caso não estava sob sua
jurisdição, Ivan Yegorovich argumentava o contrário, enquanto Piotr Ivanovich,
como não estava na discussão desde o início, não tomava o partido de ninguém,
mas passava os olhos pelo Gazette, que tinham acabado de entregar.
– Senhores – exclamou. – Morreu Ivan
Ilitch.
– Não é possível!
– Está aqui. Pode ler – disse Piotr
Ivanovich, passando o jornal que ainda cheirava a tinta a Fiodr Vassilyevich.
Cercadas por uma borda preta, liam-se as
seguintes palavras:
É com profundo pesar que Praskovya
Fiodorovna participa a amigos e parentes a passagem de seu estimado esposo, Ivan
Ilitch Golovin, membro da Corte Suprema, que deixou esta vida no dia 04 de Fevereiro
do ano da graça de 1882. O enterro acontecerá na sexta-feira, à uma hora da
tarde..."
in "A Morte de Ivan Ilitch" de Leon Tolstoi
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"A Morte de Ivan Ilitch",
Leon Tolstoi,
Livro do mês
31 agosto 2016
E a finalizar, o formato televisivo da "Margarita e o Mestre"
Ainda na sequência da última sessão e antes de avançarmos para o Leon, cá fica a Parte 1 da série russa. Legendas em inglês ou espanhol...
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"Margarita e o Mestre",
Mikhail Bulgakov
30 agosto 2016
Ainda em tempo de "Margarita e o Mestre"
Ainda no rescaldo do romance de Agosto, algumas ilustrações interessantes que encontrei na net (não consigo colocar os links para os créditos das mesmas...)
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"Margarita e o Mestre",
Mikhail Bulgakov
09 agosto 2016
"Margarita e o Mestre", de Mikhail Bulgakov - 27 de Agosto às 15h00
Capítulo I
Nunca falem com desconhecidos
"Ao pôr do Sol de um dia de Primavera invulgarmente quente, apareceram, no lago do Patriarca, em Moscovo, dois cidadãos. Um deles vestindo um fato cinzento de Verão, era baixo, gordo, calvo. Trazia na mão o seu respeitável chapéu de abas largas e na cara bem barbeada usava uns óculos anormalmente grandes com aros pretos de tartaruga. O outro, um jovem de ombros largos, cabelos arruivados e revoltos, com um boné de xadrez puxado para a nuca, vestia uma camisa de cow-boy, calças brancas amarrotadas e sapatilhas pretas..."
in "Margarita e o Mestre", de Mikhail Bulgakov
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Mikhail Bulgakov
13 julho 2016
PIERRE DE RONSARD (1524-1585)
O
poeta da Pléiade – autor dos Amours de Cassandre e de Marie, dos Sonnets pour Hélène – que inspirou Somerset
Maugham naquela dedicatória num seu livro: Mignonne, allons voir si la rose… (O Fio da Navalha, lembram-se?) e que
agora vejo referido por Nabokov em Lolita
(Primeira Parte, Capitulo 11). Isto anda tudo ligado...
Je te salue
Je te salue, ô merveillette fente
Qui vivement entre ces flancs reluis;
Je te salue, ô bienheuré pertuis,
Qui rend ma vie heureusement contente!
C'est toi qui fais que plus ne me tourmente
L'archer volant qui causait mes ennuis;
T'ayant tenu seulement quatre nuits,
Je sens ma force en moi déjà plus lente.
Ô petit trou, trou mignard, trou velu,
D'un poil follet mollement crêpelu,
Qui à ton gré domptes les plus rebelles:
Tous verts galants devraient, pour t'honnorer,
À beaux genoux te venir adorer,
Tenant au poing leurs flambantes chandelles!
Traduza quem quiser, eu não arrisco.
Je te salue
Je te salue, ô merveillette fente
Qui vivement entre ces flancs reluis;
Je te salue, ô bienheuré pertuis,
Qui rend ma vie heureusement contente!
C'est toi qui fais que plus ne me tourmente
L'archer volant qui causait mes ennuis;
T'ayant tenu seulement quatre nuits,
Je sens ma force en moi déjà plus lente.
Ô petit trou, trou mignard, trou velu,
D'un poil follet mollement crêpelu,
Qui à ton gré domptes les plus rebelles:
Tous verts galants devraient, pour t'honnorer,
À beaux genoux te venir adorer,
Tenant au poing leurs flambantes chandelles!
Traduza quem quiser, eu não arrisco.
06 julho 2016
"Lolita" de Vladimir Nabokov - 30 Julho às 15h00
A abrir
"Nasci em Paris, em 1910. O meu pai era
pessoa branda e indolente, uma salada de genes rácicos: cidadão suíço de mista
ascendência franco-austríaca, com umas gotas do Danúbio nas veias. Daqui a um
instantinho mostrar-lhes-ei alguns deliciosos postais ilustrados, de um azul
muito brilhante. Era dono de um luxuoso hotel da Riviera. O seu pai e dois avós
tinham vendido vinho, jóias e seda, respectivamente. Aos trinta anos desposou
uma jovem inglesa, filha de Jerome Dunn, o alpinista, e neta de dois párocos de
Dorset, especialistas em assuntos obscuros - paleopedologia, um, e harpas eólicas,
outro. A minha muito fotogênica mãe morreu num singular acidente (piquenique,
faísca) quando eu tinha três anos e, exceptuando uma bolsa de cálida ternura no
mais negro passado, nada subsiste dela nos vales e fissuras da memória, sobre
os quais, se ainda podeis suportar o meu estilo (estou a escrever vigiado), o
sol da minha infância deixou de brilhar: todos vós conheceis, certamente, esses
fragrantes restos de dia suspensos, com os mosquitos, sobre alguma sebe em
flor, ou subitamente penetrados e atravessados pelo caminhante, no sopé de um
monte, no crepúsculo estival; um calor de velo macio, mosquitos dourados..."
In "Lolita" de Vladimir Nabokov
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02 julho 2016
14 junho 2016
"O Fio da Navalha" de Somerset Maugham - 25 Junho - 15h00
“ …Sinto que é meu dever avisar o leitor de
que pode perfeitamente saltar este capítulo sem correr o risco de perder o fio à
história que tenho para contar, uma vez que a maior parte é nada mais do que o
relato de uma conversa que tive com Larry. Devo acrescentar, no entanto, que se
não fosse esta conversa talvez eu tivesse pensado que não valia a pena escrever
este livro…”
In “O
Fio da Navalha” de Somerset Maugham (Sexta parte – 1)
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