19 maio 2011

O FALO DE MÁRMORE E AS TÁBUAS DE BRONZE DE VIPASCA

Nota:
Esta espécie de conto, escrito e publicado em blogue há vários anos, foi agora revisto, corrigido e aumentado sob influência de recente peregrinação por terras de Endovélico. Não se chegou a Vipasca, mas ficará para a próxima.


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Lusciénio, filho de um liberto enriquecido com um negócio de azeites rançosos e vinhos adulterados – duas ânforas de água do Tibre por cada três de genuíno néctar –, estava destinado a uma promissora carreira no foro. O pai mandara-o aprender com os melhores mestres de Roma, estagiara na Grécia, e até se deixara seduzir pelas ideias de Epicuro antes de seguir por vias mais ajustadas às práticas forenses. Porém, por razões que até um narrador omnisciente não consegue determinar, foi obrigado a exilar-se na Lusitânia, província do Império onde chegou acompanhado de Gláucida, escrava líbia para todo o serviço.
Em Itália deixou Semprónia, a lasciva, mulher de carnes voluptuosas que no martírio das noites lhe secava as fontes seminais em indescritíveis delírios de sexo. Semprónia só lhe dava tréguas em três ou quatro dias do mês sob o efeito inelutável das regras do corpo. Era então que Lusciénio se recolhia em paz nos braços de Gláucida, vingando-se em beijos e carícias ternas dos imoderados festins da carne.
No cais do porto de Óstia, de onde saiu pelo mare nostrum na rota da Hispânia, deu pela presença da libidinosa Semprónia, um olhar de despeito e fúria ao vê-lo partir na companhia da escrava. Um arrepio atravessou-lhe o corpo como um sinal de alarme. Ia fresca a aragem do mar e Lusciénio levou a essa conta o inesperado estremecimento. O pior, porém, estava para acontecer…
Ao largo da costa de Saguntum, cinco dias e cinco noites levava já de mar a galera ágil, os remos chapinhando nas águas, as velas grávidas do cálido siroco, deu conta da reiterada falência do seu membro fálico. Tentara à segunda e à terceira noite; não insistira à quarta, que o mar estava bravo e o enjoo lhe tolhia o desejo. Mas à quinta noite, sob os olhos lúcidos das estrelas, puxou Gláucida para um desvão do convés e tratou de abater o jejum. Nada conseguiu! As carnes penianas, flácidas como alforrecas, recusavam cumprir a função. Foi então que bebendo a grandes haustos o ar do mar enclavinhou as mãos no cordame da embarcação e chorou de desespero e raiva.

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Lusciénio estabeleceu-se no couto mineiro de Vipasca, terra habitada por um povo tisnado e seco, tendo requerido para sua subsistência a exploração de cinco poços de cobre. Vipasca era um cemitério de escórias, uma terra esventrada de galerias e poços com toupeiras humanas dentro. O transporte do minério fazia-se sob escolta dos legionários para o porto fluvial de Myrtilis, seguindo daí para Ossonoba e Lacóbriga onde era transbordado para embarcações de longo curso que logo partiam para as Colunas de Hércules, engolfando-se no Mediterrâneo. O Estado carregava os concessionários com pesados impostos, arrebatando uma boa parte do fruto do seu labor. Entre tanta adversidade, os banhos públicos constituíam o único refrigério na inclemência dum clima muito quente no Verão e assombrosamente frio no Inverno.
Lusciénio, porém, rapidamente se habituou à terra, à índole pachorrenta daqueles povos que se debruçavam sobre as searas com todos os vagares do mundo, sempre de dolentes cantes, pedindo licença a um braço para mexer o outro como se andassem cansados desde o princípio dos tempos, apascentando rebanhos de ovelhas e vigiando com os olhos dormentes as varas de porcos pretos focinhando a nutriente bolota sob os ramos dos chaparros. Habituou-se a apreciar a flora e a fauna locais, o olor e a luz das estevas em flor, o voo da abetarda e da cegonha. O sul da Lusitânia era uma terra de horizontes largos, de estranhos monumentos de pedra que se recortavam na paisagem, uns apontando os céus como dedos hirtos, outros em forma de templo na sua massa tosca, erguidos por antiquíssimos povos, muito anteriores aos celtas e cónios que a civilização de Roma ali viera encontrar.
Quando o procurador do couto mineiro informou o governo de Emerita Augusta da chegada do exilado, da concessão de cinco poços que acabava de requerer e do curriculum forense de que era detentor, além do rápido deferimento da matéria requerida recebeu taxativas instruções para que o mesmo fosse contratado como jurisconsulto ao serviço da administração local. E assim, a par da gestão das suas concessões mineiras, Lusciénio passou a trabalhar como legista no aperfeiçoamento dos regulamentos económicos e sociais de Vipasca.

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Tudo parecia sorrir ao exilado jurisconsulto. O procurador, agradado com o douto desempenho das suas funções, recebia-o no triclínio da sua villa e era vê-lo reclinado em ceias sumptuosas, em esquisitas degustações, comendo e bebendo do melhor, desde mariscos provenientes de Troia e Gades até vinhos da Bética e da Campânia. O minério que saía das suas concessões rendia-lhe bons proveitos. Gláucida floria de beleza na primavera da vida, até pensara dar-lhe a alforria e casar-se com ela. Só aquela disfunção eréctil não dava sinais de regredir.
Um centurião com quem costumava falar nas horas brandas do banho, ensinou-lhe uma receita obtida de um druida gaulês: misturar numa papa de favas feita com água do mar intestinos de atum e tâmaras do Egipto; juntar vinho doce e mel de abelhas; tomar uma hora antes da cópula. Experimentou, mas não deu resultado.
Alarmado com a persistência do desarranjo, resolveu tentar a medicina. Médicos não havia em Vipasca, seria necessário ir a Pax Iulia e consultar um qualquer aspirante a Hipócrates que por lá exercesse a arte. Consultou, mas não obteve a cura.
Foi então que decidiu recorrer à intercessão divina. Tinha-se espalhado por uma vasta região da Lusitânia o culto do deus Endovélico. De Ebora a Ossonoba, de Caetobriga a Myrtilis corria a fama daquela divindade salutífera que curava mais e melhor que o próprio Esculápio. Lusciénio rumou ao santuário do deus e prometeu a entrega votiva de um falo da altura de um homem, esculpido em mármore róseo, se lhe fosse restituído o poder viril. E, à cautela, tendo como provável que a causa do seu padecimento fosse feitiço da infame Semprónia, dirigiu preces a Prosérpina, deusa infernal, para que contrariasse o mal de inveja que lhe tinha sido feito.

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Nunca se conseguiu apurar se graças a Endovélico ou a Prosérpina foi Lusciénio curado da sua aborrecida perturbação. A Posteridade descobrirá no local do santuário, nas proximidades de Alandroal, muitas aras e lápides com inscrições votivas, até uma cabeça da divindade esculpida em boa pedra, mas não há registo de qualquer falo de mármore, em tamanho natural ou da altura de um homem, o que poderá indiciar que o voto não foi cumprido por não ter sido recebida a graça.
Porém, nos escoriais da antiga Vipasca, hoje chamada Aljustrel, serão encontradas em 1876 e 1906 duas tábuas de bronze contendo a legislação do couto mineiro. E isso, sim, deverá ter sido obra do letrado Lusciénio, filho dum liberto rico, exilado na Lusitânia por obscuros motivos, amante terno da escrava Gláucida e objecto sexual de Semprónia, mulher lasciva, invejosa e má.

11 comentários:

Maria Amélia disse...

Luscénio, na sua peregrinação, visitou em primeiro lugar o lugar da rocha, onde subiu a tempo de ouvir os sussuros do oráculo, que sopravam através dos orifícios mágicos e, com uma certa dose de ingenuidade ou fé (o caso não era para menos), julgou entender propícios os augúrios. Cheio de esperança, dirigiu-se então ao templo do deus, para fazer a sua promessa (já imaginava o belo falo que mandaria esculpir em mármore do mais branco...) seguido por um grupo ruidoso de garotos lusitanos, muito sujos e empoeirados, fazendo uma grande algazarra, na esperança de que o rico cidadão lhes lançasse umas moeditas.

Maria Amélia disse...

Já agora, corrigindo o nome do nosso herói, Lusciénio, nome de ressonâncias vagamente conhecidas, Lucifecit, Lucifer...

EMMANUEL disse...

No meu dicionário de Latim, Luscienius vem como nome de homem, enquanto Glaucis é nome de cadela.
Sempronia, por sua vez, é nome de mulher, embora Sempronius seja nome de família ilustre (caso dos Gracos).

Maria Amélia disse...

Este Emmanuel (Deus connosco?)sempre me saiu um erudito!

Manuel Nunes disse...

Maria Amélia,
Não é só esse Emmanuel-Deus Connosco que bota erudições. Também me candidato:
1. O hidrónimo não é "Lucifecit" mas "Lucefecit".
2. Não tem nada a ver com "Lucifer".
3. Lucifer é "o portador da luz", pois o sufixo "fer" vem do verbo latino "fero-fers-ferre..." que significa "levar" e "trazer".
4. Já "Lucefecit" pode traduzir-se por "fez a luz", dado que "feci" é pretérito do verbo latino "facio-is-ere-faci-factum" que significa "fazer".
5. Assim,não confundamos as coisas: Deus para um lado e o Diabo para outro, se bem que a gente saiba (Saramago dixit) que eles são amigos... A diferença é que DEUS FEZ A LUZ e o DIABO (LUCIFER) ROUBOU-A (LEVOU-A).

Eu sei que tens aí os livros desses teus mestres esotéricos e que vais esmagar o pseudo-eurodito e o pseudolatinista com a exactidão científica. Força!

Manuel Nunes disse...

Corrijo: pseudo-erudito. Não confundir com a crise do euro, "pseudo-eurodito". Safa!

Maria Amélia disse...

Respondendo, de forma irrecusável e pedindo, desde já, desculpas pela falta de rigor:

1-Lucefecir é a designação cartográfica da Carta Militar esc.1:25 000.
Encontro mais as seguintes designações em autores diferentes: P. Pereira- Lucefecit; Ribeira de Lucefece (Leite de Vasconcellos). Artigo da Net que conjuga várias fontes (que seria interessante visitar, mas este não é o meu trabalho actual... autor Heitor Baptista Pato)- Lucifecit / Lucifece / Lucefece... parece que valem muitas variantes (à alentejana?).

2- Se não tem nada a ver com Lucifer já é uma questão de tese a demonstrar... Este autor, talvez citando outros mais avalizados, procura provar, através das referências feitas ao nome da Ribeira (o nome que não se diz) nas Cantigas de Santa Maria, compiladas no século XIII por Afonso X (escritas em galaico-português), que o nome da ribeira é realmente associado ao tal “portador da luz” (cuja etimologia o meu amigo muito bem desdobra). Por minha conta e risco, adianto que também o facto de a ribeira ser bastante sinuosa, sugerindo, de acordo com Paulo Pereira, a evocação da serpente (o Satanás dos relatos do Genesis), aponta para a associação a Lucifer.
A minha conclusão é a de que não se deve separar os dois significados-lucefecit e lucifer ( são antagónicos, tal como muito bem expões), pois eles se teriam colado no decorrer da formação e fixação da palavra.

3- Inteiramente de acordo, de latim nada sei... Manuel José dixit.

4- Aqui nem todos os autores coincidem com o meu amigo (Paulo Pereira é da tua opinião: lux fecit, embora evoque o nome de uma divindade celta, Lug...), pois vão buscar a etimologia a outras origens, começando logo com L.V., que viu a origem do nome em Odialvicivez (Paulo Pereira diz que é esta a designação daquelas terras em documentos medievais): Odi em vez de gwadi (rio em árabe, lembrar Guadiana e outros). Bem, aqui as coisas complicam-se, porque ainda há quem veja neste al- vicivez uma versão arabizada de Lucifer... E voltamos sempre ao mesmo.
5- Não, não vamos confundir nada, ou, pelo menos fazer sempre um esforço para evitar isso, embora, aqui para nós, o Saramago não tenha inventado nada: no Livro de Job a narrativa desenrola-se a partir de uma aposta entre Deus e o diabo (diabolo, que na versão grega significa espalhar, desbaratar, digo eu, o bem...).

Por último, o que aqui fica é o mais que por ora se pôde arranjar, ficando provado que não esmaga, nem tal pretende, o erudito latinismo do meu amigo, antes aproveitando, quer a complementaridade das buscas, quer o pretexto para lançar alguma discussão. Que fica em aberto; aceitam-se mais argumentos, não achas?

Manuel Nunes disse...

Muito bem. Dou-me por satisfeito e nem me atrevo a replicar. A minha querida amiga usou todos os argumentos, até o da carta militar escala 1:25000, o que, convenhamos, não é de menor importância.
Sobre latim, como muito bem sabe, também não percebo nada - só manipulo os dicionários e já mal me recordo das declinações básicas: rosa, rosae; dominus, domini; rex, regis. Talvez o Emmanuel possa explicar-me alguma coisa, embora me pareça que o forte dele é o aramaico.

Custódia C. disse...

Perante tão erudita e documentada discussão, limito-me a referir o interesse com que segui os passos de Lusciénio.
Eu, que nasci no Concelho de Vipasca, que tenho a família paterna espalhada por Pax Julia e a família materna na encosta da bela e branca Myrtilis, gostei de travar conhecimento com esse filho de um liberto que caiu um pouco ao acaso nas terras da Lusitânia.
Inspirou-me simpatia pela sua "desgraça" e por isso espero que tenha conseguido a graça do Endovélico.

Avé Manuel :)

Joca disse...

...e eu, que provenho de berberes e magrebinos, de mouros e de mouras, fiquei almariada com tanto latim...

Maria Amélia disse...

Descendentes quase provados da geração de Lusciénos e companhia, à mistura com berberes, magrebinos, sírios e congéneres, uni-vos! Queremos esta história de ex-votos fálicos melhor contada!