26 janeiro 2013

EGITO GONÇALVES

Poeta não do Porto, mas de Matosinhos, ontem lido na nossa sessão de Júlio Dinis. Livrinho de 1970. Aí fica um poema, para leitura serena:

Às vezes
no coração da noite
debruço-me sobre ti e interrogo
a sombra da tua pele.

Pergunto com o olhar, depois
os lábios movem-se,
toco-te, todo um ciclo
recomeça.

Que gesso aprisiona o sangue
que nos morde? Que navio espero
no final dos meus gestos?

O importante é saber
onde dói.

 
(p.57)

JÚLIO DINIS E POESIA

Intervenção poética no final da nossa sessão de ontem

23 janeiro 2013

UM POEMA DE JÚLIO DINIS


C. ***

Não meças o amor pelo tempo que dura;
Ontem amei-te mais nessa hora tão ligeira,
Senti maior prazer, gozei maior ventura,
Do que se ao pé de ti passasse a vida inteira.

Deixa que esta paixão termine com o dia,
Efémera recém-nascida à madrugada,
E que ao cair do sol, nessa hora de poesia,
Deixou pender no chão a fronte desfolhada.

Fiquemos sempre assim, um ao outro ignorados
Nestas vagas regiões duma paixão nascente.
Sigamos cada um caminhos separados;
Com uma hora de amor a alma é já contente.

                                                          Lisboa, 1869.
 
 
JÚLIO DINIS, Poesias, 6º volume das "Obras Completas", Lisboa, Círculo de Leitores, 1992, p. 254.

22 janeiro 2013

JÚLIO DINIS E A ARTE DO ROMANCE


Embora de diferentes formas e em extensão variável, todos os grandes escritores reflectiram e escreveram sobre a literatura. Schiller, Garrett, Eça, T. S. Eliot, Pessoa, Régio, Pamuk e Kundera estão entre esses poetas e romancistas autores de vários textos sobre a condição da poesia e a arte do romance.  
Júlio Dinis também não fugiu a tal exercício, o que demonstra ser de facto um grande romancista, preocupado com o que escrevia e a com a recepção dos seus escritos por parte do público.
Durante a sua segunda permanência na città dolente (como chamou, numa referência a Dante, à cidade do Funchal), entre 17 de Outubro de 1869 e Maio de 1870, foi escrevendo uma série de textos que figuram nas suas “Obras Completas” com o título “Ideias que me ocorrem”.
Excerto dum desses textos sobre a arte do romance:
“O romance é um género de literatura essencialmente popular. É necessário que na leitura dele as inteligências menos cultas encontrem atractivos, instrução e conselho e que, ao mesmo tempo, os espíritos cultivados lhe descubram alguns dotes literários para que se possa dizer que ele satisfez à sua missão.
Romances exclusivamente apreciados por eruditos não realizam o seu fim, romance que pela contextura literária revolta a crítica ilustrada, embora fascine o povo por certas qualidades prestigiosas, é um instrumento perigoso que deprava o gosto e às vezes a moral.
A verdade parece-me ser o tributo essencial do romance bem compreendido, verdade nas descrições, verdade nos caracteres, verdade na evolução das paixões e verdade enfim nos efeitos que resultam do encontro de determinados caracteres e determinadas paixões.
Realizados estes desideratos, pode ter-se a certeza de que, ainda sem grande complicação de enredo, o romance há-de agradar aos leitores, que a cada momento estão vendo no livro reflexos de si próprios, de seus pensamentos, de suas paixões e avivando memórias de passados episódios da sua vida.” *
Estes tópicos são coerentes com o que percebemos de Uma Família Inglesa, As Pupilas do Senhor Reitor e demais construções romanescas do escritor portuense.
 
*JÚLIO DINIS, Inéditos e Esparsos, 7º volume das “Obras Completas”, Lisboa, Círculo de Leitores, 1992, p. 11.

18 janeiro 2013

JÚLIO DINIS NA ILHA DA MADEIRA

Estátua de Júlio Dinis numa rua do Funchal: o cumprimento dum nosso amigo. (Novembro de 2011)

O livro a que tenho recorrido ultimamente (JÚLIO DINIS, Cartas e Esboços Literários), contem várias cartas escritas do Funchal durante os períodos em que por lá estanciou, em busca de alívio para a sua doença, o autor de Uma Família Inglesa. Há cartas marcadas por uma grande tristeza, próprias de quem sentia contrair-se o tempo de vida a que podia aspirar. Algumas, porém, ultrapassam o registo melancólico e chegam a ser sarcásticas na apreciação que fazem da sociedade funchalense e da vida dos “doentes do peito” na ilha.
É o caso deste excerto duma carta para Custódio Passos, datada de 5 de Maio de 1869:
“Eu imaginava que a Ilha da Madeira teria costumes novos para mim, que haveria nesta sociedade uma feição especial. Nada disso; os mesmos cavacos políticos nas praças, as mesmas cerimónias nas salas de partidas, as mesmas bisbilhotices nas lojas, onde se reúne a élite funchalense. É o Porto sem tirar nem pôr, com a única diferença de se entrar ainda mais pelo íntimo das casas para assoalhar o que por lá vai.
Uma noite houve aqui um baile em casa dum morgado. Os morgados andam por cá a rodo. Pois ao almoço do dia seguinte eu sabia das minhas patroas [as suas hospedeiras], que aliás não tinham lá ido, as mínimas particularidades da soirée. As informações distribuem-se aqui às horas do leite e do pão quente.
A natureza compensa as impertinências desta sociedade. Mas não é fácil a um doente passear no campo. Passeios a pé são impraticáveis, graças às pavorosas subidas que por toda a parte se encontram. A rede não é tão cómoda como parece; os carros sem rodas não podem vencer todos os caminhos. Depois um homem habitua-se, como aí no Porto, a dar todos os dias a mesma volta e acabou-se.
Outra impertinência do Funchal é a conversa forçada em doenças do peito. Todos os dias os doentes se encontram nas ruas e informam-se reciprocamente de quanto tossiram, de como passaram a noite, da maior ou menor pressão que sentem, e de mil pequenas coisas a que os doentes dão importância. Não há meio de fugir disto.”

16 janeiro 2013

EDUCAÇÃO COMERCIAL em "UMA FAMÍLIA INGLESA"


Peço às caras leitoras que conhecem as artes contabilísticas que comentem o capítulo XXII, EDUCAÇÃO COMERCIAL.
Era eu aluno do Curso Geral de Comércio (Escola Comercial Ferreira Borges) quando li este romance. Lembro-me de ter conversado então com a minha professora de Contabilidade (Dra. Estela) sobre a forma ágil como o Carlos Whitestone conseguira entrar nos segredos técnicos das partidas dobradas.
LETRAS A RECEBER
a VINHO,
o lançamento que lhe foi dado como exemplo de aprendizagem pelo experiente guarda-livros.
Naquele tempo em que ainda não se sonhava com o POC (Plano Oficial de Contas), fez-me notar a minha professora que o guarda-livros Manuel Quintino trabalhava com uma subconta (VINHO) em vez de usar a conta adequada, MERCADORIAS.
Tempo espantoso em que os mestres de Contabilidade conheciam os nossos escritores! Aqui presto a minha homenagem a essa grande professora. Foi da sua boca que pela primeira vez ouvi falar de Vergílio Ferreira e de Aparição. Estávamos na primeira metade dos anos sessenta. Professora de Contabilidade, não de Literatura!
 

15 janeiro 2013

DIANA DE AVELEDA e RAMALHO ORTIGÃO


Júlio Dinis, pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, não foi o único usado pelo autor de Uma Família Inglesa. Numa série de cartas e textos publicados em diversos jornais, o jovem escritor adoptou o pseudónimo feminino de Diana de Aveleda.
Diana de Aveleda, tanto nas suas cartas a Cecília (personagem fictícia), como nas que dirigiu a articulistas da imprensa portuense, assumia o papel de uma mulher inteligente, com alguma cultura, que se demarcava do discurso masculino e da forma de sentir e agir típica dos homens.
Foi assim que enganou Ramalho Ortigão numa carta que lhe enviou depois de o futuro obreiro de As Farpas ter escrito um artigo no Jornal do Porto. Não me dei ao trabalho de procurar esse artigo, mas devia exprimir ideias sobre a condição feminina, exaltando, dentro do espírito do século, as mulheres culturalmente activas, atributos que não agradaram a Diana de Aveleda.
Aqui fica um excerto dessa carta enviada a Ramalho Ortigão em Fevereiro de 1863:
“A mulher digna de o ser é aquela em cuja ortografia os eruditos tenham que lamentar a ignorância absoluta das letras gregas e latinas, a que dos jornais políticos só lê o folhetim, a que dum livro passa em claro os prólogos, que põe de parte as condições filosóficas dos romancistas para seguir o entrecho do romance; que perde de vista a ideia metafísica do autor, para não ver nos acontecimentos narrados senão acontecimentos; a que não tem o ridículo descoco de repetir após a leitura o qu´est ce que cela prouve de filosófica e insuportável memória. É a que folga com os casamentos no final da novela, chora sinceramente a morte da heroína, sonha com a beleza do herói e odeia do coração o pai, o tio, tutor ou conselho de família que se opõe à realização dos castos desejos dos dois amantes.” [1]
O perspicaz Ramalho embatucou, não desconfiou de nada, mas como cavalheiro que era lá publicou a seguinte nota:
“Recebi ontem o escrito, que hoje se publica com este título [‘Coisas verdadeiras’] e que será concluído na folha de amanhã. Era ele acompanhado de uma carta muito elegante e igualmente assinada pela autora. Aplaudo-me de haver escrito com o título ‘Coisas Inocentes’ a bagatela que me proporcionou  esta honra. Ignoro se Diana de Aveleda é um pseudónimo ou um nome. Basta-me também saber que é uma senhora quem o escreve.
Em um folhetim que hei-de publicar brevemente, buscarei provar que fui mal compreendido pela minha leitora e colaboradora excelente. No entanto curvo-me muito respeitosamente diante da fineza que acabo de receber e ponho o meu cordial agradecimento aos pés de Diana de Aveleda.” [2]
Assim mesmo. Joaquim Coelho/Júlio Dinis/Diana de Aveleda tinha na altura 24 anos. Ramalho Ortigão era um pouco mais velho, 27.





[1] JÚLIO DINIS, Cartas e Esboços Literários, Porto, Livraria Civilização, 1946 (d. do prólogo), p. 268.
[2] IDEM, Ibidem, p. 265.

14 janeiro 2013

JÚLIO DINIS e CAMILO: Encontro no Chiado e Ironia


Excerto curioso de uma carta de Júlio Dinis para o seu amigo Custódio Passos, irmão do poeta Soares de Passos.
Escrita em Lisboa a 18 de Fevereiro de 1869.
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“Ontem, descendo o Chiado, esbarrei cara a cara com não menor personagem do que Camilo Castelo Branco. Se fosse no Porto, saudar-nos-íamos muito cerimoniaticamente e passaríamos. Aqui foi outra coisa. O amável romancista dirigiu-se-me com maneiras tão afáveis, que dir-se-ia sentir um real prazer em me encontrar.
Queixou-se-me por miúdos dos seus males físicos, que o tinham obrigado também a vir a Lisboa; das suas apreensões a respeito duma suposta doença de espinha medular (e alguns fundamentos tem para a suposição), das canseiras que lhe tinha dado a doença dum filho, obrigando-o isso a dias de continuada vigília; informou-se dos meus padecimentos, deu-me conselhos, sentiu do coração, que a minha doença me não deixasse escrever; e terminou oferecendo-me a sua casa. Separámo-nos como grandes amigos, depois dum tête-a-tête de um quarto de hora.
O homem está realmente muito escavacado. Ele diz que morre saciado – porque soube viver muito em 42 anos.”
 
JÚLIO DINIS, Cartas e Esboços Literários, Porto, Livraria Civilização, 1946 (d. do prólogo), p. 129.
 

13 janeiro 2013


EROS E SONHO

                                  Ao João, leitor de D. H. Lawrence, que soube
                                  sonhar o sonho e o contou
                        
Conhecias o flagelo do esquecimento, a exígua memória
que habita a matéria dos sonhos, e por isso os escrevias
num caderno que tinhas à cabeceira da cama. Foi assim
que pudeste falar do corcel do amor, priapo de asas
com que penetravas as húmidas cavernas da satisfação.
Deixavas-te levar na sela múltipla do seu dorso e sobrevoavas
planícies brancas que só existem na inocência
dos bons. Depois, ao rumor da noite, vias ondular o quimono
de seda duma gueixa, havia uma vibração de línguas
desafiando os equinócios da indiferença.
O poder iniciático cingia-te a fronte de miosótis,
caía no bosque do teu corpo a chuva agra e doce
do contentamento. Seguravas um livro, assim
como quem repousa a mão sobre um seio de mulher.

JOSÉ RAFAEL                                                                                   
                                                                   

04 janeiro 2013

D. H. Lawrence e Lady Chatterley





Novamente a «Geração Perdida» mas desta vez do lado de cá do Atlântico; D. H. Lawrence, escritor maldito para a moral «eduardiana» da Inglaterra da época e não só (veja-se o julgamento da Penguin Books quando edita o texto na sua versão integral em 1960); próximo do grupo inovador de Bloomsbury e do «Modernismo»; produto de uma industrialização por si malquista (o pai era mineiro e a paisagem verde/cinza de uma Inglaterra em transformação, a sua Eastwood natal, no Nottinghamshire nas Midlands mineiras, marca a sua obra). Exilado por questões do coração, da literatura e voluntariamente, mas inglês até à medula pela sua nostalgia da velha «Green England», dos cavaleiros e de Robyn Hood e pela sua acuta consciência das diferenças de classe, ainda tão vivas no início do séc. XX.

Eis aqui o final do seu prefácio da obra, de 1929:

«Assim, entre o puritano da velha escola, sempre ameaçado de sucumbir já serôdio, à indecência sexual; entre a pessoa à moda da nova geração que diz :« Podemos fazer tudo; se queremos pensar numa coisa podemos fazê-la»; e, finalmente, o bárbaro de alma vil e de espírito impuro, que procura a indecência, o campo de acção deste livro é muito estreitamente libertado. Mas eu digo-lhes, a todos:«Conservem as vossas perversões (...) de puritanismo, ou de moderno impudor, ou de simples grosseria. Quanto a mim, defendo o meu livro e a minha posição: a vida só é aceitável se o espírito e o corpo viverem em harmonia, se houver um natural equilíbrio entre ambos e sentirem um pelo outro um respeito espontâneo.»

03 janeiro 2013

SINTRA FOREVER

Antes que se apague o brilho da memória de dia 1 de Janeiro deste ano-bébé, passado no coração da Serra de Sintra de forma tão auspiciosa, aqui se publicam e mandam registar, os apontamentos fotográficos possíveis, face ao variado e animado das diferentes e por vezes coincidentes atividades. Se não, vejamos: depois da passeata à Peninha a ver o mar e o Tejo na lonjura, enquanto uns acendiam o lume, outros passeavam na ponte pênsil, a fazer o malabarismo do chinelo, com muito aplauso dos medrosos; alguns punham a mesa; havia um coro a acompanhar a gaita de foles; conversa, muita; podia-se ainda entrar no concurso da fisga para ganhar um xuxu... O que fizémos todos, foi cantar os parabéns à Rosa, comer e beber  à tripa- forra e, por fim, participar na quemada galega, que o Carlos Capela preparou, com muito saber setentrional, com todos os ingredientes, pozinhos de pirlimpimpim e os esconjuros da praxe. Ardeu bem até com um sopro geral se extinguir, como mandavam as regras do exorcismo... (Aqui para nós, tal foi o poder da imprecação, que alguém jura ter visto um magote de bruxas a fugir do local, a uma velocidade mágica...). Combinámos desde já um encontro no mesmo local, daqui a um ano, intercalado com muitos dos já costumados passeios e outras e variadas atividades... Em caminhada...


 
 
 

A REIVINDICAÇÃO DO AMOR

Depois de Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, obra em discussão, amanhã, no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro, já nos encontramos na companhia de O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence – dia 10 na Biblioteca Municipal de Cascais, ciclo de leituras “A reivindicação do amor”.
Há quem não saiba, ou não queira saber, mas a leitura é um grande remédio contra a melancolia – um verdadeiro emplastro Brás Cubas!

02 janeiro 2013

LEITURA DO MÊS : "UMA FAMÍLIA INGLESA", DE JÚLIO DINIS : 25 DE JANEIRO, 21 HORAS

Exmo. Sr. Joaquim Guilherme Gomes Coelho
Recebi, mas só muitos dias depois, o exemplar com que V. Exa. me obsequiou, do seu romance Uma Família Inglesa.
(…)
Coisa muito para se citar com louvor e admiração neste seu novo livro, é (quanto a mim) que, sendo tão sóbrio o enredo, e tão pequeno o teatro da acção, o interesse dela é todavia dos mais poderosos. O talento real foi sempre assim, e assim é também em todos os seus poemas a Natureza: de elementos mínimos compõe, sem esforços nem violência, os máximos efeitos.
Deus o conserve (e já se vê que o há-de conservar até ao fim) no óptimo sistema que adoptou.
Outros que o elogiem (e com esses também eu faço coro) como escritor de romances já distintíssimo, não só para entre nós. Eu, por cima desse mérito reconheço-lhe ainda o de filósofo e moralista, que algum dia tem de ser colocado entre os de primeira plana. Teofrasto e La Bruyère não debuxaram com mais exacção os caracteres. Balzac mesmo não lê mais por dentro nos indivíduos. V. Exa., além do esmero com que nos pinta o mundo exterior, e nos fotografa a sociedade, tem o raro dom da intuspecção no mais eminente grau. Cumpre o nosce te ipsum; ciência rara! e ousa (o que também não é vulgar) não desviar jamais os olhos da eterna máxima, risota hoje para muitos:
Rien n´est beau que le vrai, le vrai seul est amaible.
(…)
Adeus, meu caro, meu prodigioso poeta. Creia nas veras com que me assino.
 
Lisboa, 15 de Julho de 1868
 
                                                                     De V. Exa.
                                                        admirador, confrade amigo,
                                                             e servo muito obrigado
 
                                                                   A. F. de Castilho
      
Júlio Dinis, Cartas e Esboços Literários, Porto, Livraria Civilização, 1946 (d. do prólogo), pp. 283-286.

AO ANO NOVO



Atravessou os recifes de coral da Polinésia horas antes
de se anunciar no Dubai e em Atenas. Seguia célere,
esperado nos cais da noite pela alegria dos homens.
Os cépticos, porém, desconfiaram, e deram em acreditar
que o antes se colaria ao agora, como o agora
se encostaria ao depois. O tempo é só um, disseram, e Zenão
de Eleia poderá ter rido na eternidade roxa dos seus paradoxos.
Nada percebo de metafísica, penso, nada sei da geografia do tempo,
essa ciência, talvez inexacta, que lida com os fusos horários
e os paradigmáticos meridianos. Sei apenas que tenho, no móvel
da sala, uma gaveta cheia de fotografias, folhas arrancadas
de velhos calendários, e, como cicatrizes, velas extintas  
de aniversários distantes. Esgares da memória com que hoje
me encontro num ano novo que sorri de nada.

JOSÉ RAFAEL

01 janeiro 2013

QUEIMADA GALEGA

Para os nossos leitores que andaram hoje na companhia da mãe Natureza por entre ritos esconjuratórios e, quem sabe, outras práticas do oculto. Caminhos de Deus ou do diabo?

O CONXURO DA QUEIMADA

Mouchos, coruxas, sapos e bruxas.
Demos, trasgos e diaños,
espritos das nevoadas veigas.
Corvos, pintigas e meigas:
feitizos das manciñeiras.
Podres cañotas furadas,
fogar dos vermes e alimañas.
Lume das Santas Compañas,
mal de ollo, negros meigallos,
cheiro dos mortos, tronos e raios.
Oubeo do can, pregón da morte;
fuciño do sátiro e pe do coello.
Pecadora lingua da mala muller
casada cun home vello.
Averno de Satán e Belcebú,
lume dos cadavres ardentes,
corpos mutilados dos indecentes,
peidos dos infernales cús,
muxido da mar embravecida.
Barriga inútil da muller solteira,
falar dos gatos que andan á xaneira,
guedella porca da cabra mal parida.
Con este fol levantarei
as chamas deste lume
que asemella ao do Inferno,
e fuxirán as bruxas
a cabalo das súas escobas,
indose bañar na praia
das areas gordas.
¡Oide, oide! os ruxidos
que dan as que non poden
deixar de queimarse no augardente
quedando así purificadas.
E cando este brebaxe
baixe polas nosas gorxas,
quedaremos libres dos males
da nosa alma e de todo embruxamento.
Forzas do ar, terra, mar e lume,
a vós fago esta chamada:
si é verdade que tendes máis poder
que a humana xente,
eiquí e agora, facede cós espritos
dos amigos que estan fóra,
participen con nós desta Queimada.

(Autor deste conxuro: Mariano Marcos de Abalo)