27 abril 2019

Curso de Literatura Portuguesa do Séc. XXI (BSDR)


"Este curso pretende abrir o leque de possibilidades de leituras, refletindo sobre o que é escrever hoje numa sociedade mais imediata, mais informada, numa época em que publicar é mais fácil, em que a escrita se democratizou, obrigando-nos a ser mais criteriosos e exigentes. Vamos falar dos autores que estão no circuito comercial, dos que sofrem por ele, dos que lhe são parasitas e dos que apenas lhe são indiferentes. Vamos também falar de livros, editores, movimentos, ideias e vamos ler, pensar, discutir, num curso que é muito mais um sítio onde a partilha de leituras dita o caminho da conversa.

Rosa Azevedo é formada em Literatura Portuguesa e Francesa com curso minor em Literaturas do Mundo e tem mestrado em Edição de Texto. Tem realizado desde 2007 diversos cursos de literatura portuguesa e hispano-americana, para além de outros trabalhos de produção ligados à literatura, nomeadamente na área do surrealismo e da edição independente. Fundou e foi presidente da Associação Cultural Respigarte e do grupo teatral A Mancha. É produtora do Reverso - encontro de autores, artistas e editores independentes e do Muito Cá de Casa da Casa da Cultura de Setúbal, para as questões da literatura, onde é também moderadora. 
É livreira e programadora cultural da Livraria Snob. Mantém o blog estórias com livros."

Gratuito
Inscrições: 214 815 403/4 | bsdr@cm-cascais.pt

26 abril 2019

A Arte não tem nada que ver com o ganha-pão!


Dos sonhos perdidos:

“… Amontou a massa crua e cinzenta, informe, em cima do prato do torno, sentou-se no banco muito alto, deu ao pedal, o prato rodou, e ele pôs-se a afeiçoar o barro. Girando vertiginosamente, sob a palma das mãos e ao toque dos dedos, incrivelmente ágeis, o barro pouco a pouco tomou forma. Era primeiro uma bacia bojuda, depois um jarro, em seguida cresceu como se tivesse vida própria, lançou-se, esgadanhado, ondulou, fez-se melodia no ar – era uma ânfora grega! – 

Olhando um momento, por cima dos óculos, a frágil fórmula efémera, o Boi-do-Val’ murmurou como se falasse sozinho: 

- Eram coisas assim que eu gostava de fazer. Mas só faço tachos, panelas, alguidares! – e esmagou tudo com os punhos tremendos.

A Arte não tem nada que ver com o ganha-pão!

In “A Escola do Paraíso” de José Rodrigues Migueis

23 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (9)

A questão do novo pendão nacional representou uma das disputas mais renhidas, e com traços caricaturais, que se seguiram à revolução de 5 de Outubro. Para a sua escolha foi constituída uma comissão de que fizeram parte Columbano, João Chagas, Afonso Pala, Ladislau Parreira, Abel Botelho e dois oficiais revolucionários. A disputa era entre a continuação da bandeira azul e branca, suprimindo naturalmente o escudo monárquico, e a criação de uma bandeira verde-rubra segundo a tradição cromática do republicanismo. Segundo é explicado por João Medina em História de Portugal Contemporâneo Político e Institucional, edição da Universidade Aberta, 1994, diziam certos partidários do cromatismo azul e branco que «uma súbita mudança de cores, de desenhos e emblemas na bandeira portuguesa poderia suscitar, nas nossas colónias africanas, a justificada desconfiança dos negros», argumento de que há «um eco no romance semimemorialista de José Rodrigues Miguéis, quando este diz: "receava-se que os pretos, com perdão de quem me ouve, não acatassem a bandeira nova, e se revoltassem, tomando-a por estrangeira."» É evidente que está a referir-se a A Escola do Paraíso. Nós, que temos a leitura fresquinha, sabemos que a ideia foi do impagável Santiago, lançada naquele belo Cap. 30 - República, sou teu. Triunfou a ideia da bandeira que temos: a apresentação oficial deu-se a 1 de Dezembro de 1910 e a publicação no Diário do Governo tem a data de 30 de Junho de 1911.
 

21 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (8)

No Cap. 23 a família de Gabriel muda-se para uma nova casa na Quinta da Charca, perto da igreja de Nossa Senhora dos Anjos. Nova mudança justificada pela exiguidade dos cómodos de São Gens e pela proximidade do colégio dos filhos. « Não houve pois remédio senão mudarem-se para mais perto do Colégio, aquele estirão! Era um segundo andar também, com três janelas para a rua e outras tantas para um desafogo ao lado, mas amplo e bem dividido. E a Vista linda! Lá estava Lisboa, sempre diante dos olhos, agora em novas perspectivas: lavada e soalhenta, branca e rosada, com rasgões de céu azul por cima!» Foi nesta zona da Quinta da Charca, ali com o Monte Agudo ao pé, que nos anos vinte se começou a construir o Bairro das Colónias, " Um bairro Art Déco e Modernista" como  pode ser lido no blogue que lhe é dedicado. Chega-se lá, no Google, a partir de uma simples pesquisa.
=Fotos de 20-4-2019=

19 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (7)

 
O Regicídio, 1 de Fevereiro de 1908. Dona Leonor de Medanha e Serrano (talassa, como bem intuiu o pequeno Gabriel) ficou arrasada: « - Que desgraça, que grande desgraça! Nem quero ver ninguém... Esta nação está amaldiçoada! Maçons, carbonários, e aquele assassino do João Franco! Sua majestade a rainha... e agora o Dom Manuel, coitadinho, uma criança a governar esta piolheira... Que vai ser disto, que vai ser de todos nós? E que fazem os ingleses? Porque é que esses traficantes não mandam cá dois cruzadores para arrasar isto, meter esta choldra nos eixos , fuzilar a canalha? Porquê? Isto só vai com uma intervenção estrangeira» Na Quarta Parte da narrativa conta-se a história desta Dona Leonor e dos vínculos que prendiam a menina Adélia à sua importante pessoa. O plangente discurso da senhora tem lugar numa casa ao Largo do Pelourinho cuja entrada, se bem se percebe, era feita pela Calçada de S. Francisco, atravessada pelo passadiço do desaparecido elevador da Biblioteca (terceira imagem). Na segunda imagem pode ver-se o Largo do Pelourinho, erguendo-se atrás dos edifícios, a partir do largo contíguo de São Julião, a estrutura do elevador (Cap. 19 - Bolacha «Marselhesa»).

17 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (6)

Em 1901 era inaugurado o transporte electromotorizado na cidade de Lisboa: carreira Cais do Sodré a Algés. É num destes eléctricos que o pequeno Gabriel vai à praia (Pedrouços ou Algés?). À volta, apeiam-se no Terreiro do Paço (ele, a mãe e a irmã) e seguem pela Rua do Ouro. Num momento em que se separa delas, vai para o meio da rua e é colhido pela rede salva-vidas dum eléctrico que trava com um «grande estardalhaço» de ferragens. Envergonhado, não explica à mãe o sucedido. No entanto, pensa não ter sido nenhum Anjo ou Pomba de Pentecostes a salvá-lo: «se não tem pulado tão depressa para cima da rede, como os acrobatas!...» O nosso herói recusava assim a ideia do auxílio sobrenatural, aprendendo a acreditar em si e nas capacidades humanas.
(Cap. 14-Animais Nossos Amigos)

16 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (5)

Volto ao Cap. 9 d´A Escola  do Paraíso. Largo das Olarias, onde se situava o Teatro da Miquelina, «uma sala obscura, antiga cavalariça ou estrebaria» com o seu «negro portal» dentro de um beco. Perguntei a quem poderia saber e depois de alguma estranheza, ao ouvirem «antiga cavalariça ou estrebaria», indicaram-me o local da 3ª foto, dentro do tal beco. Não fiquei convencido, mas aí fica como hipótese de trabalho. A nespereira está carregadinha, mas não cheguei a provar... O que é que este capítulo tem de particularmente interessante? É nele que Gabrielzinho sente pela primeira vez o doce apelo de algo que não sabe explicar: «a atmosfera carregada de feminidade», «a qualidade poética e teatral» da casa da Miquelina com as boas sensações recebidas no convívio com as manas Perliquitetes. Até à descoberta do teatro, o choque entre a cor da poesia e a vida cinzenta dos simples ganhadores de dinheiro. Coisas sentidas, ainda não compreendidas. O pai, Sr. Augusto, é que não tinha dúvidas: «o Teatro é bom para pelintras e caloteiros», «a Contabilidade e Escrituração Comercial, isso é que é vida, e o mais são tretas.»
=Fotos de 16-4-2019=

15 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (4)

Em A Escola do Paraíso, a família de Gabriel muda-se para uma nova casa (Cap. 9 - No Teatro da Miquelina) na Rua de São Gens ao Monte: « Apesar de batida pelo vento e chuva da Barra, a varanda [da cozinha] permite avistar a Outra-Banda pardacenta e quase nua, o casario do Castelo, e a parada do quartel da Graça, onde a infantaria desfila nos dias de cerimónia, toda empenachada e debruada de vermelho ao som dum ordinário bélico e arrebatador.» A parada do quartel (antes foi convento, até à extinção das ordens religiosas em 1834) aí está na última foto. No mesmo capítulo, um pouco mais à frente, lê-se o seguinte: «Do segundo andar [frente do edifício] avistam-se telhados vermelhos, lisos e sem flores, ao longe a Penha e os jazigos do Alto de São João como ossadas a branquear ao sol. Nada disto tem o encanto da Rua da Saudade, para sempre perdido e preservado. Tudo é mais duro e calcário... E o lençol de prata e esmalte azul do Tejo desapareceu.» A nova morada da família ficaria assim num prédio do lado esquerdo da segunda foto. É nestes prédios que as traseiras dão para o Largo da Graça e a parte da frente para as bandas da Penha de França e do Alto de São João. E alguns deles bem parecem ser daqueles tempos (princípio do século XX), quando a rua não estava tão composta e os horizontes eram mais largos.
=Fotos de 15-4-2019=

 

14 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (3)

Sobe-se a Rua da Saudade até ao fim, vira-se à direita, e estamos no Largo dos Loios. A Igreja de Santiago de Lisboa é um pouco mais adiante. Referências no Cap. 3-Cais de Embarque de A Escola do Paraíso: « O sol rutila, escorre como um mel pelos telhados, polvilha gloriosamente o Tejo, um lago sereno, com velas brancas e vermelhas, de longe indolentes, distantes como a nostalgia. É logo abaixo do Castelo, as traseiras encostam a São Thiago e aos Loyos (perdão, deixem ficar assim à antiga, por favor!).»
= Fotos de 12-4-2019=
 

13 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (2)

No dia do aniversário, a mãezinha bebeu uma pinga. Tudo por causa do frustrado passeio a Benfica (ou seria à praia?) com a merenda já dentro do cabaz e o pai Augusto apoquentado com a chegada de um vapor com que não contava. O passeio em risco, o passeio em águas de bacalhau, ide vós que eu fico no hotel amarrado ao trabalho.  Vão os quatro (a mãezinha e os três manos) para a beira do Tejo. A garrafinha de vinho era para o pai, mas veio mesmo a calhar para afogar a mágoa. Ó mar, tu és um leão, declamava a progenitora para o Tejo que não chegava aos calcanhares do mar autêntico. Primeiro verso da quadra popular
Ó mar, tu és um leão
Tudo queres comer,
Quem sabe, no teu cantar,
As coisas que queres dizer?
- Coligida no Cancioneiro Popular Português, de José Leite de Vasconcellos.
--- A Escola do Paraíso, Capítulo 7 – O Vestido Cor de Ervilha Seca.
 

12 abril 2019

O PARAÍSO PERDIDO (1)

PARAÍSO PERDIDO é uma metáfora perfeita para INFÂNCIA. José Rodrigues Miguéis (1901-1980) nasceu no nº 13 da Rua da Saudade, cidade de Lisboa. Nas águas-furtadas, certamente, como o seu alter ego Gabriel cujos episódios da infância são narrados em A Escola do Paraíso. O nº 13 já não existe: soçobrou de velhice ou no transe das escavações do Teatro Romano. Agora, os números ímpares da rua saltam do 7 para o 15 sobre o telheiro que protege os vestígios arqueológicos do séc. I. Vejamos o que nos diz o texto:
«Os paquetes atracam logo em baixo, ao cais, e a rua deve talvez o nome à saudade que para sempre ficou flutuando no sítio: a saudade dos que ficam, e a dos que partem e querem prender-se à terra, de braços, olhos e almas alongadas. Os vapores encolhem os seus dedos de ferro, os rebocadores arquejam, retesam-se de esforço, vomitam fumaça negra - e eles lá vão devagar, contrariados, adornados ao peso da gente (às vezes soldadesca morena e pardacenta para as guerras-dos-pretos) que acode às amuradas, agarrada à derradeira imagem dos que ficam a dizer adeus-adeus, talvez à esperança absurda de que o navio afinal não chegue a zarpar.»
(...)
«Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas  e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir e de voltar: quando? e para onde?»
--- JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, A Escola do Paraíso, Cap. 3 - Cais de Embarque.
 
= Fotos de 12-4-2019=
 

03 abril 2019

NO TEATRO

Um pequeno grupo de leitores da nossa Comunidade assistiu hoje, no Teatro D. Maria II, à récita de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. Encenação de Miguel Loureiro. Da Memória ao Conservatório Real, apresentada pelo autor em conferência de 6 de Maio de 1843, respigamos o seguinte passo: «Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama: só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.» Foi um bom espectáculo.


"A Escola do Paraíso" de José Rodrigues Miguéis - 26 de Abril às 21h00


A abrir

"O vento mia e rabeia no telhado, abala a casa, parece que leva tudo pelos ares, engolfa-se a espaços pela chaminé abaixo, espevita o lume onde a chaleira canta, vai fazer oscilar a chama do candeeiro de petróleo e arranca-lhe um veuzinho de fumo negro. Algures, uma porta mal engonçada bate no trinco, enfurecida, como se quisesse libertar-se e partir com o vento à grande aventura.
Na mansarda, de outro modo silenciosa, paira uma inquietação. Só ali na cozinha brilha a luz amarela e tranquila, que o abajur de papelão concentra na mesa e na tábua de engomar.Ao lado, pelo respiradouro em ogiva do ferro, espreita um lume quase branco, de inferno em miniatura, que espalha o aroma e o calor reconfortantes do sobro queimado. Alvas de neve e cuidadosamente dobradas, vão-se empilhando na mesa as peças dum minúsculo enxoval..."

Início do conto "O Gato Preto", o primeiro in "A Escola do Paraíso" de José Rodrigues Miguéis