27. Portugal Ano 5253.
Quando mandaram os mininos
aos lagartos.
DEPOIS desta
assi temerosa fortuna e tempestade,
não tardou outra
sobre mi muito maior, porque
desejando este
rei achar alg~ua razoada ocasião de
avexar-me,
mandou saber se havia entrado mais
gente no reino
que aquelas das seis centas casas
como fora o
acordo, e como quer que a pressa
com que de
Castela saíam estes corridos filhos
meus não lhe deu
lugar a entrar por conto nem
esperar algum a
ser o derradeiro, acharam-se mor
número; todos
estes que sobejaram disse El-rei
que lhe ficavam
cativos e escravos seus, porque
como a taes os
podesse magoar a sua vontade, e
esecutar neles
sua má tenção, e não bastando
quererem-se
resgatar pelo preço que os mais
haviam entrado
nem per outro algum, havendo-
-se por minha
desventura descuberto naquele
tempo a ilha de
São Tomé, cujos moradores eram
lagartos, serpes
e outras muito peçonhentas bichas
e deserta de
criaturas racionaes, onde desterravam
os malfeitores
que à morte eram já obrigados per
justiça, em sua
companhia quis também que entrassem
as inocentes
criaturas de todos estes judeos,
cujos paes
parece que ante o juizo divino eram
condenados.
Chegada esta
infelice e miserável hora em que se
havia ~ua tão
fera crueldade de esecutar, vereis
ensanguentar os
rostos com as mãos as coitadas
madres que dos
braços lhe tiravam seus filhos de
até tres anos,
depenar as barbas os honrados velhos
porque lhe
arrebatavam suas entranhas de ante os
olhos, e as mal
afortunadas criaturas levantar seus
vivos gritos té
o céo, vendo-se afastar tão despiadosamente
de seus amados
padres em idade
assi tenra e
lastimosa. Lançavam-se aos pés de El-
-rei alg~uas,
cramando que ao menos as deixassem
ir acompanhar
seus filhos, e nem inda a isto sua
piadade se
inclinava. Entre estas houve ~ua mai que,
considerada a
horrenda e nova crueza sem mestura
de alg~ua
misericórdia a seus cramores, arrebatando
seu filho nos
braços da alta nao, dentro no tempestuoso
mar se lançou e
fundio com a sua única
criatura
abraçada.
(…)
SAMUEL USQUE, Consolação às Tribulações de Israel, edição de Ferrara, 1553.