30 março 2014

ORÍON E A SUA ESTRELA BETELGEUSE, “PORTAL DA CASA DE DEUS”


Avistadas ontem, por uns quantos de coração limpo, no regresso de Miranda do Corvo (1º aniversário do Clube de Leitura local).
“Jacob deixou Bersabeia e partiu para Harã. Chegou a certo lugar e resolveu passar ali a noite, porque o Sol já se havia posto. Jacob pegou numa pedra do lugar, colocou-a sob a cabeça, e adormeceu. Teve então um sonho: Uma escada erguia-se da Terra e chegava até ao Céu, e os anjos de Deus subiam e desciam por ela.”
Génesis, 28:10-12
 
“Não asseguro que avistassem no firmamento as sete estrelas de Oríon, conhecendo-se como raro cintilam elas diante dos que vagueiam no negrume do próprio coração.”
 
MÁRIO CLÁUDIO, Oríon
 

 

 
MIRANDA DO CORVO, distrito de Coimbra, região Centro, sub-região Pinhal Interior Norte. Foral de 1136, dado por D. Afonso Henriques, ainda príncipe do Condado Portucalense. Orago: São Salvador.



 


28 março 2014

D. SIMOA GODINHO, A DAMA NEGRA DA ILHA DOS ESCRAVOS






Introdução à apresentação de Fernando Lopes, na sessão de hoje da Comunidade de Leitores de SDR, a propósito de Oríon, um livro que abre muitas janelas, como já se percebeu. Também esta. Aproveitemos.
Autoria de imagens e conteúdos: Fernando Lopes 


"ORíON", DE MÁRIO CLÁUDIO, E ALGUNS CASAMENTOS REAIS

 D. Leonor de Áustria
D. Catarina de Áustria
 
“Corria o ano da Graça de mil quinhentos e vinte e nove, sendo Rei de Portugal D. João III, aquele infeliz soberano que vira a noiva dilecta consorciada com o que o gerara.”
 
MÁRIO CLAÚDIO, Oríon , 1ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2003, p. 102.
 
D. Leonor de Áustria (1498-1558), irmã de Carlos V, foi prometida desde muito cedo ao infante D. João, herdeiro de D. Manuel I.
Porém, tendo enviuvado pela segunda vez, tomou-a para si o rei Venturoso (casamento em 1518). Diz-se que pretendeu reforçar os laços da coroa portuguesa com a poderosa casa de Áustria. A sua filha D. Isabel foi prometida a Carlos V e ao que viria a ser D. João III foi-lhe dada, em substituição daquela que o pai lhe arrebatara, D. Catarina de Áustria (1507-1578), outra irmã do imperador. A acreditar nos retratos, pode ver-se quem ficou a ganhar.


27 março 2014

O "TCHILOLI" DE SÃO TOMÉ (3)


Quem ler a Tragédia do Marquez de Mantua, de Baltasar Dias (não é muito extensa, cerca de quarenta páginas em versos de sete sílabas), percebe que a questão que nela se coloca é a da relação entre poder e justiça. O poder para ser forte terá de ser justo.
O filho do imperador Carlos Magno, D. Carloto, comete um crime, um homicídio, na pessoa do sobrinho do Marquez de Mantua, de nome Valdovinos, com o intuito de se apoderar da viúva, Sybilla.
Provado o crime, devia o imperador esquecer os laços de família e condenar o filho ou, ao contrário, fazer tábua rasa das queixas dos ofendidos e proteger o seu sucessor? Como grande soberano, exerceu cegamente a justiça, e D. Carloto foi degolado.
O que é curioso é que esta peça, levada por senhores de engenho e  dignitários para as ilhas equatoriais, foi sendo subvertida, ao longo dos tempos, pelos naturais que a representavam. A introdução de bastantes passagens apócrifas, subordinadas ao sentimento local, distanciam-na hoje do texto original do poeta madeirense.
A questão que se colocava ao povo santomense antes da independência era a iniquidade do poder colonial, pelo que representar uma peça cujo tema central era o exercício de um poder não iníquo constituía, em certo sentido, uma forma de resistência. Ainda que depois da independência tenha o Tchiloli evoluído, acentuando-se os signos e referências dos valores africanos, desde sempre que só parcialmente  foi  tributário da cultura lusa e europeia. O colonialismo não percebeu isso, parece.
 
Nota: Sobre o nome “Tchiloli”, diz Christian Valbert no seu estudo: “On ne connait pas l’ origine de ce mot”.
 

O "TCHILOLI" DE SÃO TOMÉ (2)


O "TCHILOLI" DE SÃO TOMÉ (1)

Sobre o "Tchiloli" de São Tomé (referido no post anterior da nossa camarada Amélia), veja, quem estiver interessado, este texto: Le Tchiloli de São Tomé. Un exemple de subversion culturelle, de Christian Valbert. Faz parte das actas do colóquio sobre Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Paris, 28 de Novembro a 1 de Dezembro de 1984. Edição do Centro Cultural Português de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian.

BALTAZAR DIAS PELAS ILHAS





Este livro de Mário Cláudio, Oríon, é um autêntico cesto de cerejas. Tendo surgido a ideia de o ler a propósito de D. Simoa Godinho, dama a vários títulos enigmática, sobre a qual contamos ficar a saber algumas coisas interessantes, através do Fernando Lopes, da Associação Cultural Espaço e Memória, revelou-se Oríon motivo de muitas e variadas pesquisas extra, sobretudo para aqueles que dispõem de tempo e saber para as prosseguirem.
A propósito de Baltazar Dias, o poeta cego madeirense do século XVI, através da ficção que Mário Cláudio não hesita em tecer à volta de personagem com o mesmo nome, jogral da donatária da Ilha do Príncipe, aproveitamos para evocar a cultura popular, que, pela tradição, transporta até hoje elementos vivos daquela literatura de cordel.
Na exposição (CCB) África- Visões do Gabinete de Urbanização Colonial (1944-1974), encontrámos este testemunho, fotografia tirada nos anos 40 ou 50, da representação anual da Tragédia do Marquês de Mântua... e que faz hoje  parte do património cultural de S. Tomé e Príncipe.

http://stomepatrimonio.blogspot.pt/2008/03/tchiloli.html

26 março 2014

BALTASAR DIAS E O ABECEDÁRIO DA MULHER VIRTUOSA: D de Devota à Virgem; H de Humilde a seu marido; Z de Zelosa da honra

BALTASAR DIAS, poeta cego, oriundo da ilha da Madeira, viveu entre os últimos anos do reinado de D. Manuel e os primeiros do de D. Sebastião, cerca de 1515 a 1560. D. João III outorgou-lhe o privilégio da impressão e venda das folhas volantes com que ganhava a vida, estabelecendo penas para os usurpadores da sua propriedade intelectual.
Mário Cláudio, no romance Oríon, apresenta-o em São Tomé, deslumbrando  colonos e africanos com a representação de autos e tragédias, nomeadamente a Tragédia do Marquez de Mantua e do Emperador Carlos Magno. Ficção pura a passagem do madeirense pelas ilhas do Equador, o que estes romancistas inventam!
A obra de Baltasar Dias divide-se em autos de devoção, tragédia, romances e trovas. Segundo alguns autores, é um continuador da escola de Gil Vicente, um homem do Renascimento com uma concepção ainda medieval da arte.
Tem duas obras satíricas, Malícia das Mulheres e Conselhos para Bem Cazar. É-lhe atribuída uma carta escrita a uma senhora que queria aprender a ler. Reza assim:
 
«Señora:
«Agora me derão hum recado da parte de V.M. em que me pedia lhe mandasse hum ABC, feito de minha mão, que queria aprender, porq se acha triste, quando vê senhoras de sua qualidade, q na Igreja rezão por livros & ella não. (…) V.M. deve (…) deixar o desejo de saber ler, pois já he cazada, & passa de vinte annos de idade. Porem se este conselho não lhe parece bom ou ainda que o he, se não satisfaz por obedecer a seu rogo , fazendo o que me pede, lhe mando aqui com esta hum ABC, que V.M. aprenda de cór, & sabido levemente com ajuda de Deos, aprenderá o mais que lhe for necessário.
«O qual, he que o A quer dizer que seja Amiga de sua caza; & o B, Bem quista da vizinhança; & o C, Caridosa com os pobres; & o D, Devota da Virgem: & o E, Entendida em seu ofício; & o F, Firme na fé; & o G, Guardadeira da fazenda; & o H, Humilde a seu marido; & o I, Inimiga de mixiricos; & o L, Leal; & o M, Mança; & o N, Nobre; & o O, Onesta; & o P, Prudente; & o Q, Quieta; & o R, Regrada; & o S, Sezuda; & o T, Trabalhadora; & o V, Virtuosa; & o X, Xpâa [sic]; & o Z, Zelosa da honra.
«E quando tiver tudo isto anexo a si, que lhe fiquem proprios, crea que sabe mais letras que todos os philosophos. E porque confio em V.M. que os experimentará os achará certo, nam me alargo; mais rogo a nosso Senhor a tenha de sua mão, & a mim me dê graça com que o sirva até o fim.»
 
Obra consultada: BALTASAR DIAS – Autos, Romances e Trovas, Lisboa, IN-CM, 1985

À VOLTA DE "ORÍON"

Parte da oração de Valdovinos, sobrinho do Marquez de Mantua, antes de expirar -- uma pérola:

Salve, Senhora benigna,
madre de misericórdia,
paz da nossa grã discórdia,
dos pecadores mezinha,
vita dulce e concórdia,
spes nostra, a ti invocamos,
salva-nos de escuras trevas,
a ti, Senhora, chamamos
desterrados filhos de Eva,
a ti, Virgem, suspiramos,
a ti gemendo e chorando
em aqueste lacrimoso
vale sem nenhum repouso,
sempre, Virge, a ti chamamos
que és nosso prazer e gozo.

BALTASAR DIAS - Autos, Romances e Trovas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 324.

25 março 2014

"CONSOLAÇÃO ÀS TRIBULAÇÕES DE ISRAEL"


27. Portugal Ano 5253.
Quando mandaram os mininos
aos lagartos.

DEPOIS desta assi temerosa fortuna e tempestade,
não tardou outra sobre mi muito maior, porque
desejando este rei achar alg~ua razoada ocasião de
avexar-me, mandou saber se havia entrado mais
gente no reino que aquelas das seis centas casas
como fora o acordo, e como quer que a pressa
com que de Castela saíam estes corridos filhos
meus não lhe deu lugar a entrar por conto nem
esperar algum a ser o derradeiro, acharam-se mor
número; todos estes que sobejaram disse El-rei
que lhe ficavam cativos e escravos seus, porque
como a taes os podesse magoar a sua vontade, e
esecutar neles sua má tenção, e não bastando
quererem-se resgatar pelo preço que os mais
haviam entrado nem per outro algum, havendo-
-se por minha desventura descuberto naquele
tempo a ilha de São Tomé, cujos moradores eram
lagartos, serpes e outras muito peçonhentas bichas
e deserta de criaturas racionaes, onde desterravam
os malfeitores que à morte eram já obrigados per
justiça, em sua companhia quis também que entrassem
as inocentes criaturas de todos estes judeos,
cujos paes parece que ante o juizo divino eram
condenados.
Chegada esta infelice e miserável hora em que se
havia ~ua tão fera crueldade de esecutar, vereis
ensanguentar os rostos com as mãos as coitadas
madres que dos braços lhe tiravam seus filhos de
até tres anos, depenar as barbas os honrados velhos
porque lhe arrebatavam suas entranhas de ante os
olhos, e as mal afortunadas criaturas levantar seus
vivos gritos té o céo, vendo-se afastar tão despiadosamente
de seus amados padres em idade
assi tenra e lastimosa. Lançavam-se aos pés de El-
-rei alg~uas, cramando que ao menos as deixassem
ir acompanhar seus filhos, e nem inda a isto sua
piadade se inclinava. Entre estas houve ~ua mai que,
considerada a horrenda e nova crueza sem mestura
de alg~ua misericórdia a seus cramores, arrebatando
seu filho nos braços da alta nao, dentro no tempestuoso
mar se lançou e fundio com a sua única
criatura abraçada.
(…)

SAMUEL USQUE, Consolação às Tribulações de Israel, edição de Ferrara, 1553.

24 março 2014

CRÓNICA DE D. JOÃO II

CAPÍTULO LXVIII
 
Ida dos moços que foram judeus à ilha de São Tomé
 
E no ano de mil quatrocentos e noventa e três, em Torres Vedras, deu el-rei a Álvaro de Caminha a capitania da ilha de São Tomé de juro e herdade; e porque aos judeus castelhanos que em seus reinos dentro do termo limitado não saíram mandou tomar por cativos, segundo a condição da entrada, todos os meninos e moços e moças pequenas que tinham, depois de os mandar tornar todos cristãos, os enviou à dita ilha com o dito Álvaro de Caminha, por tal que sendo apartados terem razão de serem melhores cristãos e haver por isso causa de a ilha ser melhor povoada, como por este respeito o foi em grande crescimento.



23 março 2014

A Senhora de Rocamador

Notre Dame de Rocamadour ou a Virgem Negra. Pode visitar-se no Santuário de Rocamadour na Vallée de la Dordogne, em terras gaulesas.

Isto a propósito de Benjamim

“ …E precisavam os francos que tão luminoso se estendia o arrebol que rodeava o rapaz que os tolheu um misto de respeito e de pânico, igual ao que costumavam experimentar na sua nação em face do rosto sombrio da Senhora de Rocamador…”

In Oríon  de Mário Cláudio

22 março 2014

Ai os pés ...

A rainha de Sabá perante Salomão - Johann Friedrich August Tischbein (1750-1812, Holanda)

"... Se na donzela não fixava eu os olhos, atentava no rasto dos seus pés, marca tão perfeita, tão perfeita que nem a Rainha de Sabá na areia do deserto, e a caminho do palácio de Salomão ..."

Assim fala Abel, a apresentar-nos Perpétua...

in "Oríon" de Mário Cláudio


21 março 2014

A propósito da Primavera, da Poesia e de Oríon

"Alegoria da Primavera", Sandro Boticelli
A primeira namorada, tão alta
que o beijo não alcançava,
o pescoço não alcançava.
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilómetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.
"Orion", Carlos Drummond de Andrade

DIA DA POESIA É QUANDO UM HOMEM QUISER

GAIO VALÉRIO CATULO (Verona, 84 a. C. – Roma, 54 a. C.)
Vivamos, minha Lésbia, e nos amemos.
Sem que o que digam murmurantes velhos
Importe para nós mais que uma palha.
Podem morrer e renascer os sóis.
A nós, quando se apaga a breve luz,
Noite é perpétua que dormir havemos.
Oh dá-me beijos mil, depois um cento,
Depois mais outros mil, e um outro cento,
Depois ainda outros mil, e mais um cento.
Depois, quando os milhares forem já muitos,
Erraremos a conta, a não saibamos,
Para que a inveja não nos leve a mal,
Sabendo quanto foi de beijos dado.

Versão de JORGE DE SENA, obtida aqui: http://viciodapoesia.com/2013/04/03/beijos-mil-o-poema-v-de-catulo/

20 março 2014

ADOLPHE-WILLIAM BOUGUEREAU (1825-1905), Jovem defendendo-se de Cupido
 
NAS ERVAS
 
Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura,
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso,
descer aos flancos, enterrar
 
os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta
 
aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão
 
porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
de fogo descer à neve,
 
abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho –
a glande leve.
 
EUGÉNIO DE ANDRADE, Variações Sobre um Corpo, antologia de poesia erótica contemporânea, Porto, Editorial Inova, pp. 37 e 38.


19 março 2014

"HISTÓRIAS DE POUCAS PALAVRAS"

Tenho andado em viagens à volta do meu quarto: limpando o pó, arredando móveis, arrumando livros. E é neste frenético sair de mim que topo com o livrinho da nossa amiga Cristina Leimart. Estava entalado entre o Moby Dick, de Melville, e o Guide des Caresses, de um tal Pierre Valinieff, texto especioso e raro que não recomendo a pessoas decentes.
Como bem notam, o opúsculo tem um cordel, mas não é literatura de cordel. As histórias de Cristina Leimart são simples e bonitas como as flores do bosque. Do bosque da ficção, diria Umberto Eco.
A dedicatória, de 2009, está escrita a tinta roxa. Interrogo-me sobre o simbolismo do colorido e sou levado a pensar que não deve augurar nada de bom. Para mim, claro, não para ela.
--- CRISTINA LEIMART, Histórias de Poucas Palavras, Lisboa, Apenas Livros, 2009.

A BELEZA, SIMPLESMENTE

MUSEU DO LOUVRE, 02/2014

Mais as imagens que as palavras, apenas com duas notas: uma, para a emoção de (re)ver Miguel Ângelo nas esculturas inacabadas dos "escravos", revelando, a propósito, toda a pujança da beleza (masculina, tal como ele próprio preferia); a outra observação refere-se a Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson: o nome sugere que se poderia tratar de uma pintora... puro engano. Os alvores do romantismo despontam pelas mãos e mentes masculinas...




"AS CANÇÕES DE ANTÓNIO BOTTO"

Sobre este livro, começo por referir o texto de FERNANDO PESSOA que lhe serve de prefácio: "António Botto e o Ideal Estético em Portugal". Este texto foi publicado na revista Contemporânea, vol. I, nº 3, ano I, 1922, e deu origem a uma célebre polémica.

Depois a epígrafe, retirada de Winckelmann: Como é confessadamente a beleza do homem que tem de ser concebida sob uma ideia geral, assim tenho notado que aqueles que observam a beleza só nas mulheres, e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens, raras vezes têm um instinto imparcial, vital, inato, da beleza na arte. A pessoas como essas, a beleza da arte grega parecerá sempre falha, porque a sua beleza suprema é antes masculina que feminina.

Finalmente, transcrevo o primeiro poema do livro - de Adolescente, Livro Primeiro:

Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda - 
Para outro momento,
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro...

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos - És lindo!

A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,
- Que mais precisamos nós?


António Botto (Alvega, Abrantes, 1897 - Rio de Janeiro, 1959) foi um poeta que recebeu as atenções críticas de Fernando Pessoa, José Régio e João Gaspar Simões. Sobre ele escreveu José Régio, em 1925, em As correntes e as individualidades na moderna poesia portuguesa: "(...) Mas é em António Botto - grande poeta e grande artista - que o esteticismo se afirma com mais pureza. António Botto é um clássico - no mais amplo sentido da palavra." No final da sua vida literária, doente e atormentado, publicou Fátima, poema do mundo (1955), escrito "aprovado por Sua Eminência o senhor Cardeal Patriarca de Lisboa D. Manuel Gonçalves Cerejeira", demonstração de uma degenerescência artística difícil de classificar. São seus os versos laudatórios dirigidos àquela figura da hierarquia religiosa: O grande Cardeal, o Cerejeira, / Como diz toda a gente de Lisboa, / Com aquela ternura verdadeira, / Dada só por paixão a uma pessoa, / Levantou uma obra tão inteira / Na grandeza da fé com que a povoa, / Que até serve de freio e de bandeira / Aos que tentam ainda apanhar Goa. / Humilde gigante que sobeja, / Em vencer pela música de sinos, / Agravos a Jesus e à igreja. / Um santo que nasceu para ficar - / Nos povos e nos cânticos divinos, / Nas estrelas, no Céu, na voz do mar.

18 março 2014

COLUNAS TRIUNFAIS



Referir a Place Vendôme, que não revisitei nesta última Peregrinação, fez-me evocar, não só as especiais circunstâncias da sua génese e desenvolvimento urbano, mas também uma selecção de colunas que me prenderam a atenção, em diferentes lugares e momentos. Uma das mais  enigmáticas é a coluna de Constantino em Istambul, mandada erigir por aquele imperador, no ano de 330, em honra da declaração de Bizâncio como a nova capital do Império; a outra é a coluna de Trajano, em Roma, inaugurada em 113, no forum do mesmo imperador e modelo da que Napoleão fez erguer em Paris, na Place Vendôme, entre 1806 e 1810, em comemoração do triunfo sobre os seus pares europeus.
Estas três colunas têm muitas coisas em comum: do ponto de vista material e físico, sendo construídas com materiais nobres, respectivamente, pórfiro vermelho trazido de  Roma (hoje irreconhecível), mármore e bronze (a partir dos canhões capturados em Austerlitz?), apresentam alturas idênticas, entre 37-38m e 44m; as bases em que assentam constituem-se como elementos integrantes, estruturais, com alguma singularidade icónica. Mas é quando passamos para os aspectos conotativos que nos apercebemos da sua dimensão, talvez porque aparecem como recorrentes e convidam a uma certa generalização, ou porque insistimos em fazer, por conta própria, o percurso que nos leva à construção dos Símbolos. Estas 3 colunas têm em comum serem obras de arte e referências urbanas erigidas mormente em nome do auto engrandecimento, assinalando, de forma que se pretendia duradoura ou quiçá eterna, o poder, o êxito, a superioridade. Mas, na realidade, podemos reflectir que estas colunas, por mais ricas e mais altas e significativas, todas elas castigadas ao longo dos séculos por diferentes vicissitudes e apropriações, não fazem mais do que repetir o símbolo ancestral, primevo e sempre actual, da potência, da virilidade, portanto da tomada de posse, atravessando a História: dos menires do Megalítico aos arranha-céus da modernidade, passando por todos os exemplos que vos ocorrerem. 
Dado porém o surto de erotismo poético que tem feito farfalhar estas páginas, podemos questionar-nos sobre a diversa mas excepcional dimensão, e poder simbólico que as palavras, por sua vez, podem atingir.

(Nota: as fotografias não são minhas e, colhidas na Net, não aparentavam ter direitos autorais, correspondendo à imagem que tenho de cada uma das situações)

16 março 2014

"VARIAÇÕES SOBRE UM CORPO", antologia de poesia erótica contemporânea


SEGREDO

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

 
MARIA TERESA HORTA

15 março 2014

L´ AFFAIRE DU CHEVALIER DE LA BARRE

Relativamente ao link
colocado num comentário deste blogue, aqui fica, para quem esteja interessado, uma indicação bibliográfica (livrinho de 129 páginas adquirido numa livraria de Montmartre pela módica quantia de 2€).
Tradução do texto da contracapa (peço desculpa por qualquer erro):
Abbeville, 1765. O chevalier de La Barre é acusado de ter profanado uma imagem de Cristo. Vítima de um ajuste de contas, condenado sem provas e ao arrepio da lei, o jovem foi torturado, decapitado e queimado com um livro interdito nas mãos: o Dictionnaire philosophique de um certo Voltaire...
Directamente posto em causa neste caso, Voltaire insurgiu-se e utilizou a sua melhor arma para denunciar a injustiça: a pena.

APETECE COMO UM BARCO


Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?


FERNANDO PESSOA

14 março 2014

NO(C)TURNOS







LÚBRICAS

Poemas de Cesário Verde e Camilo Pessanha com o mesmo título - "Lúbrica". Alguns versos:

= De Cesário:
   =========

(...)
Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

= De Pessanha:
============

Quando a vejo, de tarde, na alameda,
Arrastando com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,

E medito no gozo que promete,
a sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete;

Pela mente me passa em nuvem densa
Um tropel infinito de desejos:
Quero, às vezes, sorvê-la, em grandes beijos.
Da luxúria febril na chama intensa...
(...)

---- Ah, grandes poetas!
Os poemas completos em qualquer boa edição das obras.