António Lobo Antunes. Fotografia de Pedro Loureiro
O livro de prosas enviesadas, relutantes, com um vago sabor a hortelã-pimenta e a ácaros fritos em óleo de palma, chega-nos pela mão duma leitora que de tanto lidar com números, experiências aleatórias, variáveis discretas e contínuas, funções de distribuição normais e hipergeométricas, resolve vir desassossegar um círculo mastigante de tias de Cascais, de senhores idosos suspirantes por damas de quarenta anos, de jovens e menos jovens um bocado à rasca, desses que se passeiam pela Avenida com todo o peso da filosofia ocidental às costas pedindo a demissão de governantes socráticos, também dos platónicos e dos aristotélicos.
– Nem com as tuas cartas fiquei, meu amor, voaram-me da gaveta como rolas enfáticas defenestradas duma gaiola a que se soltaram as barras de arame decrépito. Conservo apenas algumas fotografias metidas em álbuns castanhos de lombadas gravadas a falso ouro: uma em que te vejo na piscina de Malange, o volume dos teus seios a intimidar o frágil tecido sintético do maillot; outra na marginal de Luanda, lambendo um cone de gelado de manga, o carocha estacionado na berma e a menina brincando sob quarenta graus de desvario tropical. Não sei se te perdi ou se fui eu que me perdi.
Quem trouxe o livro para círculo tão selecto não imaginou os olhos doridos de quem está habituado a chamar as perspectivas e as linhas de fuga pelos seus nomes próprios, os olhos derramados sobre os paradoxos da escrita, qual parábola de Zenão de Eleia, qual discurso cavaquista numa qualquer cerimónia de tomada de posse, como se visse voar para fora do quadro os namorados flutuantes do aniversário de Chagall ou descobrisse um nu deitado de Modigliani risivelmente convertido em peça de arte efémera; nem imaginou o poeta que não leu o livro, o poeta que aliás nunca lê os livros (Ler é maçada, estudar é nada. Grande é a poesia, a bondade e as danças… Mas o melhor de tudo são as crianças. O mais que isto é Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca…), o poeta ouvindo como dísticos ou haicai japoneses as sombras breves das demoradas impressões dos leitores; e muito menos a devoção bramânica, obcecada e lírica de quem agarra as palavras como quem cruza as pernas e se entrega aos iogas libertadores da vida dispersa de todos os dias; tampouco imaginou o atrevimento do escrevente aguado, que escreve mais do que pensa, e que às vezes até escreve aquilo que não pensa, o que quer dizer que erra mais do que acerta, verdade infeliz e crua como um ovo estrelado com a gema derramada no óleo da frigideira.
– Não me sobrou uma peça de roupa tua, meu amor. Teria desejado um sutiã, uma liga de meia, um casto lenço de cabeça, desses a que também chamam bioco e que te fazia o rosto tão bonito, ou os juvenis soquetes que usavas naquele dia em que nos beijámos sob uma acácia florida, depois desfeita à morteirada, em 1975, por um pelotão das fapla empanturrado de funje e cuca. Que afagador passa hoje a mão pela linha terna do teu seio? Que jóquei feliz te agarra as crinas de égua domada, disposta aos mais incríveis saltos nas barreiras do amor? Minha querida jóia, minha querida mulher, GTS, meu amor perdido, porque te perdi?
Obrigado, leitora das funções de distribuição normais e hipergeométricas, obrigado ó Lobo, obrigado ó Antunes. Só é lobo quem lhe veste a pele, só é Nunes quem não pode ser Antunes, obrigado pelo livro e pelas leituras possíveis, obrigado pelo chá, obrigado pelos bolinhos.
Memória da guerra colonial, dizem eles. Mais, muito mais!
(Texto lido na sessão de Março - Memória de Elefante de António Lobo Antunes)
Memória da guerra colonial, dizem eles. Mais, muito mais!
(Texto lido na sessão de Março - Memória de Elefante de António Lobo Antunes)